Distribuir palavras talvez possa ser fraqueza e deixa à mostra do inimigo alguma insensatez. Melhor não dizer. Melhor calar-se e mostrar-se sorrateiramente. Deixa assim, o dito pelo não-dito. E ficamos bem.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Ombros largos e fortes

"Sabe, Misty, sempre achei que a vida se carregava nos ombros. Desde pequeno, queria ter ombros largos para carregar a vida com mais segurança. Quando cresci, ombros largos e fortes, homem viril, de valentia incontestável, parecia estar pronto pra sustentar a vida. Que nada! Descobri que ela é grande demais. Escorre pelas costas. Atrás de nós, por onde as mãos e os olhos não alcançam. Muitas coisas se formam ao chão. Por falta de habilidade. Essa, sim, é mais importante que ombros largos. Consegui, ao final de tudo, ser um homem correto, em dia com os meus princípios e também com as minhas dívidas. Descobri os mistérios que se escondem nas lápides, nos altares e debaixo dos lençóis. Conheci mesa farta, fiz muitos amigos e tornei-me pai. Acho que foi muito o que consegui da vida. O que escorreu pelas costas, meus olhos não puderam ver. Sabe, Misty, não olhe nunca para trás, quando a vida escorrer pelas costas. A vida só cabe na medida dos nossos ombros. É pra eles que devemos voltar nossos olhos."

André Amaro. In: Os gatos morrem no asfalto.

sábado, 7 de maio de 2011

O tempo passa, e você fica

O tempo passa, e você fica
Nem sempre é tão bom, mas nem sempre é tão ruim
Às vezes passa um senhor bondoso, cheio de histórias pra contar
da sua vida cheia de aventuras, de moço trabalhador e de adulto conservador
E você se encanta, com aquele sorriso espontâneo e sem medo, já que a vida já muito lhe ensinara... Então, agora seu sorriso é libertação.
E também passa uma criança com esse mesmo sorriso puro, mas de quem ainda não provou lágrimas de solidão e desventura. Sorriso que quer dizer "sou um anjo, deixe-me voar"...
E também passa aquele jovenzinho, já com o olhar desgastado de fitar o vazio. Vazio de não ter pra onde ir, onde morar, onde comer, o que vestir. De já saber que a vida não tem sentido além daquela rodoviária fétida e burburante de gentes que demonstram o mesmo olhar de perdição.
E passa a moça ansiosa, com pouco receio, mas feliz, preparando seu enlace com o amor que aguardara por toda a vida. E ele está lá, de mãos dadas com ela, esbanjando o mesmo sorriso. Passarinhos cantarolantes.
E passa outra senhora, pele enrugada, andando vagarosamente. Triste. Vendendo balinhas para ainda se sustentar. E aquele olhar que diz "nessa altura da vida, queria apenas minha casinha de sapê 'observando estrelas junto à foguerinha de papel'"
E em outro canto... passam moços, moças, esbanjando juventude, saúde, gargalhadas e descompromissos. 'Temos todo o tempo do mundo'.
E, de repente, passa você. Sozinha, artista, que esculpe todo esse quadro e se torna contemplador. A tudo observas. Queres adentrá-lo, mas como? Para quê? O não-conhecível te amedronta. Melhor não arriscar.
E deixa eles passarem... passarem.... passarem...
Deixo-me ficar.

Maysa Sales

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Purpuralma

Inquieto-me e não me encontro
Desolada nesse rio sem ondas
Não me movimento, não ando, não retraio
Estático. Esse é o mundo ao redor
Barcos me rodeiam, navios naufragam
e não me notam
Estou vestida de púrpura, majestosa
E exalo o meu melhor perfume
Daqueles de frasco pequeno, muito pequeno
Pequenez, alma feminina
Não te engrandeces
Não te engrandecem
Te diminuem, te ignoram
Alma. Invisível. Dentro do visível palpável
E lanço aos porcos minhas jóias
Me desfaço, me entrego, rendo-me
E levas-me... afundas-me,
Desfaleço em mim e não me encontro

Maysa Sales