Distribuir palavras talvez possa ser fraqueza e deixa à mostra do inimigo alguma insensatez. Melhor não dizer. Melhor calar-se e mostrar-se sorrateiramente. Deixa assim, o dito pelo não-dito. E ficamos bem.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Outros dias

Ainda hoje estava eu a divagar sobre mais um fim. De quantos fins sobrevivemos a cada dia?
O fim de um expediente, o fim de um almoço, o fim daquele relatório enorme. E o fim de nós mesmos, quando fechamos os olhos
e adormecemos por uns instantes. Instantes esses perdidos e que nos escapam.
E pensei mesmo no fim de mais um ano e pensei o que seria de nós se não tivéssemos 365 dias para recomeçar e 60 segundos para encerrar um minuto.
Aquele minuto de silêncio entre dois olhares que se interpelam, ou de duas bocas que se calam.
E, de repente, reli um texto de Clarice, no qual a escritora divaga sobre essa beleza do infinito: "Nós estamos tão longe de compreender o mundo que nossa cabeça não consegue raciocinar senão à base de finitos". Assim, vamos nos constituindo colocando pontos finais, vírgulas, parênteses. Criamos, a todo momento, formas
de limitarmos essa grandiosa infinitude da vida. Como a poeta nos coloca, sem entender essa infinitude, a compreendemos, e vamos vivendo.
Mais uma vez estamos aqui, diante de um novo ano. Para uns, a espectralidade de um novo ciclo causa arrepios.
O novo que se inicia infinitamente após o velho, carregando em si a marca desse outro que não se (lhe) escapa. Há tanta previsão diante desse outro, que, na verdade, penso que estamos simplesmente apenas obstinados pelo medo. Pois há como prever o que virá, só não sabemos ao certo como lidaremos com esse novo vivenciar, com essa continuação infinita do outro outro. Viver é muito perigoso, disse uma vez o poeta, que, muito em seguida, também afirmou que nem é tão perigoso assim. E diante desse it que se forma infinitamente, vamos seguindo nossos rastros e perpetuando-os. Faço-me nesse hoje que transborda de tanto amanhã, que grita pelo ontem. E que se contrai em legitimação, em certeza, em veracidade.
Foi apenas mais um ano. Que germinou e floresceu. Angústias, tristezas, sorrisos, sorrisos e sorrisos. A proporção de cada emoção me constituiu novamente um sujeito e me instituirá infinitamente mais em tantos amanhãs. Nessa infinita constituição incisiva de ser sendo.

Maysa Sales

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Ó texto, texto meu


Diga-me, então

Quando (ainda (não))serás publicado.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Um rastro

Depois da fase não-entendo-nada-do-Derrida, não há como não se envolver com essa escritura outra, que nos corrói:

‎"eu não te peço perdão por ter te traído, ferido, por ter te feito mal, por te ter mentido, por ter perjurado, eu não te peço perdão por um malefício, eu te peço perdão ao contrário por te ter escutado, muito fielmente, por muita fidelidade à fé jurada, e de ter te amado, de te ter preferido, de te ter elegido, ou de me ter deixado eleger por ti, de te ter respondido, de ter dito: ‘eis-me aqui’ – e portanto de ter sacrificado o outro, meu outro outro, meu outro outro como preferência absoluta, o meu, os meus, o melhor do que é o meu, o melhor dos meus [...]”

Jacques Derrida

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Da existência

"Começar de verdade é começar possuindo-se inalienavelmente. É, portanto, não poder voltar atrás. É embarcar e cortar as amarras. Por conseguinte, é preciso levar a aventura até o fim. Interromper o que foi verdadeiramente começado é uma maneira de terminá-lo num fracasso e não abolir o começo. O fracasso faz parte da aventura. O que foi interrompido não desaparece do nada, como no jogo. Isso mostra bem que o ato é a própria inscrição no ser. E a preguiça, como recuso diante do fato, é uma hesitação diante da existência, uma preguiça de existir".

Lévinas in Da existência ao existente

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Ter vivido tão pouco me faz ver que nos contentamos com muito pouco. Com elogios medíocres, com pessoas mesquinhas, com desesperos egoístas. Viver é uma decisão. Não há universo que conspire nada para você, é apenas você quem atrai o universo! E ele é tão vastamente pequeno! Decidir por si mesmo, pelos seus ideais, pelos seus princípios é o mínimo que se pode fazer por sua dignidade. Ninguém, absolutamente ninguém, poderá te julgar pela sua individualidade, porque nem esse alguém é capaz de julgar-se. Ter decisão na vida é sublime. Segregar definitivamente água e óleo é perceber que se submeter ao incomum é escapar para sempre para fora de si.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.

Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

Antônio Cícero

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Licencio-me

É... Hoje é um grande dia.
Um dia há muito esperado, há muito sonhado e comprado: a suor, a lágrimas, a cansaço, a noites sem dormir, a muitas risadas, a amigos diferentes e inusitados, a encontros e desencontros, a professores fantásticos e a outros nem tanto assim. Viver esse hoje me remete apenas ao meu passado. Àquela criança assustada e tremendo com muito medo do primeiro dia na escola. Mas também àquela criança que se engrandecia a cada nova letra descoberta, a cada sílaba formada e às primeiras leituras. Lembro-me muito da minha primeira melhor amiga, a Larissa, que hoje fará de tudo para compartilhar esse momento comigo. Lembro-me tanto e tanto da minha avó e do meu avô, companheiros de sempre, guerreiros de sempre. De cada conselho, de cada palmada, de cada carícia e de cada canção. Dos poemas que meu avô improvisava pra mim... e depois os cantava. Sim, eu era sua musa inspiradora. Lembro-me dele muito tonto e sonolento esperando minha volta da faculdade na parada à noite. Lembro-me de tanta coisa e as palavras me escapam. Lembro-me muitíssimo do meu pai, que acabou indo embora cedo demais... E que saudade! E que vontade de ter essa figura paterna ao meu lado, todos os dias. E me lembro também de pessoas que hoje não estarão ao meu lado, por motivos que a pena e a galhofa teimam em não descrever.
Confesso que meu coração está a todo vapor e estou com os sentidos à flor da pele. Já chorei, já sorri, já me estasiei. E me vejo assim, naquela fortaleza que me fez chegar até aqui, mas que se desmorona, como num 11 de setembro, mas que também se ergue como um 28 de novembro. Eis-me de pé, prestes a receber um troféu. Nem de ouro, nem de prata, mas que reflete como diamante aquilo que sou e aquilo que mais desejo em minha vida. Um passo foi dado e outros virão, como numa ciranda desprendida. Avante, menina. A mulher que há em você hoje te chama e te conclama LICENCIADA.

domingo, 25 de novembro de 2012

Entre

Decepção é uma palavra estéril para mim, até que me aconteça...

Depois que aprendi a ser água, a chorar como a chuva só pelo profundo respeito que tenho por mim até me desvencilhar da angústia, aprendi outras coisas e recebi benefícios que vêm junto. Sei que muitas histórias desagradáveis se repetem: não acredito que seja porque o mundo “esteja perdido”, mas porque EU, dentro de tantas outras possibilidades, devo estar condicionada a viver a mesma história: primeiro passo que preciso dar adiante. Depois, seja lá o que o Outro tenha feito, ele o fez porque ME permiti que o fizesse, ou ainda, se é algo de sua índole, a minha sensibilidade falhou quando atraiu esta figura. Ou: por que percebi e aceitei que viesse para a minha vida? Que fantasmas meus esse Outro alimenta? Outro passo adiante. E assim, vou compondo caminhos mais ensolarados.

O mais bonito e mais profundo é quando você consegue se colocar passivamente, sinceramente no lugar do Outro, esquecendo suas dores e seu orgulho por um momento pra tentar entender que ele simplesmente pode estar condicionado às dificuldades, ao desamparo, ao desculpar-se, a não ser amado. Que ele deu exatamente o que tinha pra dar, que fez a única coisa que sabia fazer e que, ainda, deva sofrer mais do que qualquer pessoa que ele fira, porque não consegue amparar essa criança interna assustada que faz essa bagunça externa só pra chamar a atenção.

Eu detesto justificar os erros de alguém, até porque isto seria uma forma de me sentir superior quando julgo saber o que o Outro sentiu ou pensou quando agiu. É como se eu fosse tão sábia, que se o mundo inteiro falhasse eu teria as respostas...

Eu comecei o texto falando de uma decepção e continuei escrevendo num fôlego só, agora que ia concluir, descobri que quero mesmo é falar do amor:

Sabe quando você conhece o amor a si próprio? Quando sabe que não importa o que lhe façam porque você governa, escolhe, conduz a sua vida? Sabe quando você sabe que uma pessoa se sente bem ao seu lado só porque você sorri sinceramente? Quando você atrai muita gente saudável, dessas que sabem que merecem ser felizes integralmente e se trabalham, se melhoram a cada dia e que não economizam entregas? E que quando estão próximas, trazem à tona o que você tem de mais interessante? Eu sei tanto que imagino que alguém que decepcione voluntária ou involuntariamente por vaidade ou por maldade, certamente o fez por uma condição penosa: de não o saber.

O que dói mesmo nessas circunstâncias não é só o que foi causado: é perceber que a pessoa está vivendo uma escolha que ela fez, que ela está mais disposta a lamentar e a se vingar do mundo a simplesmente perceber a dor profunda que está guardada embaixo de tanta raiva. Que não podemos amaldiçoar a chuva, o vento, o sol: tudo vem ao seu tempo e com seu mais exato por quê. E que talvez não nos alimente naquela nossa expectativa, mas que, em algum lugar, alguém vai beber daquela água, daquela luz, daquilo que pode parecer um grande estrago pra gente, mas que é necessária para beneficiar alguém, algo. Tudo intercalado, oscilando, essencial e UNO...

Eu ia falar de uma decepção, mas ela se dissipou aqui, agora.
Conheço melhor o AMOR!

Marla de Queiroz

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A Clara Rilke, 17 de dezembro de 1906

"... Comigo acontece assim: estou verdadeiramente, apaixonadamente pronto a não desperdiçar nenhuma dessas vozes que devem chegar. Quero ouvir cada uma delas, quero retirar meu coração do peito e segurá-lo no meio das palavras de disputa e repreensão, de forma que ele não seja tocado por elas apenas de um lado, de longe. Mas ao mesmo tempo não quero desistir de meu posto ousado, tantas vezes irresponsável, e trocá-lo resignado, antes que a última voz, a mais extrema, definitiva, tenha falado comigo; pois somente nesse ponto sou acessível e aberto a todas elas, somente nesse ponto encontra-me tudo aquilo que em termos de destino, clamor ou poder quer me encontrar, somente a partir daqui poderei um dia obedecer, obedecer tão incondicionalmente como agora incondicionalmente resisto. Através de toda penetração prematura naquilo que como 'dever' quer me dominar e me fazer útil, eu bem que excluiria algumas inseguranças e a aparência daquele constante querer-escapar de minha vida, mas sinto que com isso também os grandes e maravilhosos gestos de ajuda que intervém em mim, uma sequência quase rítmica, seriam excluídos de uma ordem previsível, conduzida com energia e consciência do dever, à qual eles não mais pertencem."

Rainer Maria Rilke

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

"Ontem pensei sobre mim.
É estranho que antes de dormir pensemos no gato, no cachorro, no papagaio, nas pessoas que nos fazem sentir tão bem e ao mesmo tempo tão mal mas não em nós mesmos.
Fazemos planos.
Mas quando os colocamos em prática? Quero dizer, eu penso tanto no que gostaria de fazer e de ter feito e continuo a pensar, não me movo, não faço meus planos ganharem vida.
Quis ser diferente.
E levantei da cama sendo igual, andando com as mesmas pessoas, vestindo as mesmas roupas, caminhando no mesmo ritmo, falando dos mesmos assuntos e pensando que preciso fazer muitas mudanças na minha vida. Alguma vez fiz? Adivinhe a resposta.
Temos fome.
Nos afundamos em livros, em revistas, em redes sociais, em nossos quartos desarrumados, assim como nós e não entendemos que necessidade é esta de nos inundarmos de uma coisa só, de excessos. Para dizer a verdade, gosto de excessos, gosto de sentir tudo transbordando. É melhor sobrar do que faltar, como diz minha mãe e um bando de gente inteligente por aí.
Choramos.
Eu não queria chorar tanto. Sinto minhas defesas se desfazendo e tudo em mim cedendo, fugindo do meu controle. Mas por outro lado, pesos que não são meus vão embora, mesmo que outros venham e me carreguem novamente.
Dizemos sem dizer.
Nossos olhos. Ah, nossos olhos, eles dizem tantas coisas, não?
Vamos pensar um pouco mais em nós mesmos, sem esquecer dos outros, é claro. Vamos nos desafogar e respirar um pouco, colocar os planos em prática, mudar de verdade, erguer a cabeça e correr atrás do que realmente queremos. Deixe a boca dizer também, e escute o que deixam escondido entre os dentes".

sábado, 10 de novembro de 2012

Tardio

Ando procurando tantas respostas.
E vivo à beira. De tudo que já se foi e de que ainda será.
A vida é mesmo tão estranha. Um dia você ama, ardentemente, sem medo, sem preocupações. No outro, já não se sabe. É como se o amor fosse infinitamente maior que tudo que se é. O amor é mesmo tão egoísta! E tão intolerante! Não tolera que nos encontremos, o caminho mesmo do amor é a perdição.
Perdem-se segundos inteiros a lembrar dos momentos bons. Perde-se uma vida inteira a esquecê-lo. Perde-se tempo com brigas desnecessárias. Perdem-se tristezas estando feliz com quem se ama. Perde-se quando acaba, e, quando acaba, será que acaba mesmo?
Onde fica dentro da gente a caixinha dos amores passados? Na cabeça ou no coração?
Será mesmo que se transforma em nada, ou é tão tudo que se transforma em um outro tipo de tudo?
Para onde mesmo você levou meu amor? Onde mesmo estão todas aquelas promessas? Dentro de um saco de pipocas, ou dentro daquela caixinha de anel?
Por que mesmo você se foi? E por que mesmo que eu ainda não fui?

Maysa Sales

Marcelo Camelo - Acostumar




Posso até me acostumar
E deixar você fugir
Posso até me acostumar
Da gente se divertir
Dava tudo por amor
Eu vim de longe
Dava pra sentir
Você dançando só pra mim
Parece brincadeira
Mas eu sei que a gente faz
Um monte de besteira
Por saber que é bom demais
Posso até me acostumar
E deixar você fugir
Posso até me acostumar
Da gente se divertir
Eu vim mas trouxe o sol
E a tempestade lá de longe
Dava pra sentir você passando devagar
Pareceria tarde
Mas você foi me chamar
Morena da cidade
Eu posso até me acostumar
Posso até me acostumar
E deixar você fugir
Posso até me acostumar
Da gente se divertir

sábado, 3 de novembro de 2012

A vida me chama

‎"Me dei mal, meu bem, ninguém escapa. Mas o bom disso tudo é que agora consigo abrir meu coração sem rodeios. Sim, amei sem limites. Dei meu coração de bandeja. Sonhei com casinhas, jardins e filhos lindos correndo atrás de mim. Mas tudo está bem agora, eu digo: agora. Houve uma mudança de planos e eu me sinto incrivelmente leve e feliz. Descobri tantas coisas. Existe tanta coisa mais importante nessa vida que sofrer por amor. Que viver um amor. Tantos amigos. Tantos lugares. Tantas frases e livros e sentidos. Tantas pessoas novas. Indo. Vindo. Tenho só um mundo pela frente. E olhe pra ele. Olhe o mundo! É tão pequeno diante de tudo o que sinto. Sofrer dói. Dói e não é pouco. Mas faz um bem danado depois que passa. Não dá mais para ocupar o mesmo espaço. Meu tempo não se mede em relógios. E a vida lá fora, me chama."

Caio

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Bicho de sete cabeças

Não dá pé
Não tem pé, nem cabeça
Não tem ninguém que mereça
Não tem coração que esqueça
Não tem jeito mesmo
Não tem dó no peito
Não tem nem talvez ter feito
O que você me fez desapareça
Cresça e desapareça...

Não tem dó no peito
Não tem jeito
Não tem ninguém que mereça
Não tem coração que esqueça
Não tem pé, não tem cabeça
Não dá pé, não é direito
Não foi nada
Eu não fiz nada disso
E você fez
Um Bicho de Sete Cabeças...

Não dá pé
Não tem pé, nem cabeça
Não tem ninguém que mereça (Não tem ninguém que mereça)
Não tem coração que esqueça (Não tem pé, não tem cabeça)
Não tem jeito mesmo
Não tem dó no peito (Não dá pé, não é direito)
Não tem nem talvez ter feito (Não foi nada, eu não fiz nada disso)
O que você me fez desapareça (E você fez um)
Cresça e desapareça... (Bicho de Sete Cabeças)

Bicho de Sete Cabeças!
Bicho de Sete Cabeças!
Bicho de Sete Cabeças!

Zeca Baleiro

terça-feira, 30 de outubro de 2012

veredas de um medo

"Por que era que eu estava procedendo à-tôa assim? Senhor sei?
O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Mesmo fui muito tôlo! Hoje em dia, não me queixo de muita coisa. Não tiro sombras dos buracos. Mas, também, não há jeito de me baixar em remorso. Sim, que só duma coisa. E dessa, mesma, o que tenho é medo. Enquanto se tem medo, eu acho até que o bom remorso não se pode criar, não é possível. Minha vida não deixa benfeitorias. mas me confessei com sete padres, acertei sete absolvições. No meio da noite eu acordo e pelejo para rezar. Constante eu puder, meu suor não esfria! O senhor me releve tanto dizer"

Guimarães Rosa in Grande sertão: veredas

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

‎"Fiz o que era mais urgente: uma prece.
Rezo para achar o meu verdadeiro caminho. Mas descobri que não me entrego totalmente à prece, parece-me que sei que o verdadeiro caminho é com dor. Há uma lei secreta e para mim incompreensível: só através do sofrimento se encontra a felicidade. Tenho medo de mim pois sou sempre apta a poder sofrer. (...) Eu peço a Deus tudo o que eu quero e preciso. É o que me cabe. Ser ou não ser atendida — isso não me cabe a mim, isto já é matéria-mágica que se me dá ou se retrai. Obstinada, eu rezo.
Eu não tenho o poder. Tenho a prece".

Clarice Lispector

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me conta
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

(...)

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos - voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escuteis os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

(...)

Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
- Ó vida futura! nós te criaremos.

Drummond in Sentimento do mundo

terça-feira, 16 de outubro de 2012

"Assim, minha mágoa se renovando sem cessar, e me achando mais perdida a meus olhos - como a todos os olhos que tivessem querido me fixar, se eu tivesse sido condenada para sempre ao esquecimento de todos!- tinha cada vez mais fome da sua bondade. Com seus beijos e seus abraços amigos, era enfim um céu, um céu sombrio, em que eu estava e onde desejaria ser deixada, pobre, surda, muda, cega. Já ia me acostumando. Emocionados, trabalhávamos juntos. Mas, depois de uma carícia penetrante, ele dizia: 'como isso te soará engraçado quando eu não estiver aqui, isso por que passaste. Quando não tiveres mais meus braços em volta do pescoço, nem meu peito para nele descansares, nem minha boca fechando-te os olhos. Porque é preciso que eu vá embora, para longe, um dia. E tenho de ajudar a outros, é meu dever. Embora isso não seja apetecível... cara amiga'... Em seguida, o pressenti, tendo partido, presa de vertigem, precipitado na sombra mais temível, a morte. Fazia com que prometesse que não me abandonaria. Vinte vezes fez essa promessa de amante. Era tão superficial quanto eu lhe dizendo: 'Te entendo'".

Rimbaud in Uma temporada no inferno

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Dessa vez, hei de ir como quem jamais partira
Recolho apenas os pedacinhos do que ficou
Jogo ao léu para que o vento carregue todo o mal, e haja mal!
De hoje em diante, só quero o que me faz bem.
Só quero o que me arranca sorrisos sinceros, olhares insinuantes,
beijos desconsertados, friozinho na barriga e lágrimas só de felicidade.
Cansei de ser seu atalho, seu porto seguro, porque a recíproca definitivamente não é a mesma.
Irei em paz, com a cabeça erguida e perseverante e tendo a certeza de que, se tudo na vida passa, você também passará e ficará apenas na [ins]estante da memória, como aquele alguém que já não é mais.

sábado, 29 de setembro de 2012

"Pode ser que eu nem conheça o amor
Minha alma desperta sonhos demais
Meu desejo é sempre assim
Pede um beijo e nega com a mesma boca

Você sabe onde me encontrar
Seu coração sempre soube onde me guardar
Dentro de mim
O amor me quer... assim"

A song to say a sing, single, loneliness...

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Nossa Senhora do Silêncio

Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Eu não sei quem tu és. Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Como não te sonhar? Como não te sonhar Senhora das Horas que passam? Madona das águas estagnadas e das algas mortas. Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa. Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono. Livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte. Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada, nem te ergo ante mim como santa. Só tu, sol que não brilhas, alumias as cavernas, porque as cavernas são tuas filhas. Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta. Sê a Noite Total e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação... Seja eu as dobras do teu manto, as jóias da tua tiara, e o ouro outro dos anéis dos teus dedos. Realizadora dos absurdos. Que o teu silêncio me embale, que o teu mero-ser me acaricie e me amacie e me conforte Anjo da Guarda dos abandonados. Tu não és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contornam de mulher. Mas tu, na tua vaga essência, não és nada. Não tens realidade, nem mesmo uma realidade só tua. Propriamente, não te vejo, nem mesmo te sinto. Ocupas o intervalo dos meus pensamentos. Por isso eu não te penso nem te sinto. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas noturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua.

Fernando Pessoa

sábado, 22 de setembro de 2012

Prece

Que eu jamais desista da vida, de todas suas implicações. E que jamais desista do amor, de todas as suas inquietações.
Nessa de pensar que tudo é banalidade, que papai noel realmente não existe.
Que os sonhos da menina que ainda vive em mim jamais se tornem mulher, mas sejam meu apoio no momento em que a mulher que há em mim desmorona.
Que eu encontre forças em meio ao desespero. Coragem em meio ao desânimo.
Esperança em meio à calamidade. Fé frente ao desconhecido.
Que eu aprenda a ser a minha única e fiel companhia. Assim e para sempre.
Que assim seja. Amém.

Maysa Sales
"Quero tomar todo caminho de volta até aquele início, e tudo o que fiz não terá sido nada, terá sido menos do que varrer um umbral, ao qual o visitante seguinte trará novamente o rastro do caminho. Tenho séculos de paciência em mim e quero viver como se meu tempo fosse muito grande. Quero recolher-me de todas as dispersões, e dos usos muito precipitados quero ir buscar e poupar o que é meu. Mas ouço vozes com boas intenções e passos que se aproximam, e minhas portas se abrem... E quando procuro pessoas, elas não me aconselham nem sabem o que quero dizer. E com os livros também sou assim (assim indefeso), e eles também não me ajudam, como se também eles fossem humanos demais... Somente as coisas falam comigo.

(...)

Mas ainda me falta disciplina, o poder trabalhar e dever trabalhar pelos quais há anos anseio. Falta-me a força? Minha vontade está doente? É o sonho em mim que obstrui toda ação? Dias passam, e às vezes ouço a vida que se vai. E nada ainda aconteceu, ainda não há nada real ao meu redor; e sempre volto a me dividir e me esparramo, e apesar disso gostaria tanto de correr sobre um leite de rio e tornar-me grande. Pois - não é, Lou? -, assim deve ser; queremos ser como uma corrente e não entrar em canais e levar águas aos pastos? Não é, devemos nos conservar juntos e murmurar? Talvez, quando ficamos muito velhos, devêssemos um dia, bem no final, ceder, nos estender e desembocar num delta(...) Querida Lou!"

Rainer Maria Rilke, sempre no traço, no poros, como um estanque a arrancar-me a pele.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Raleando

Dói. Ver meu amor escorrer pelo ralo, como a preguiça de uma rotina qualquer.
Dói. Ver meus sonhos se esfarelarem, feito seu pão, que não me alimenta.
Dói. Não estar com você e não te ter.
Relembrar fotos, momentos pequenos, mas tão grandiosamente sublimes.
Voo sob seus passos, mas os perco. Que caminhos são esses? E que destinos confusos.
Fico inquieta. Quero seguir-te, só para me perder.
Seu amor é minha eterna perdição. Minha bengala caída. Meu amoleto quebrado. Minha perna bamba.
Sou sua aurora ofuscada. Sua morada perdida. Seu lar desolado.
Sou. És. Somos. Não seremos. Acabou.

Maysa Sales

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Vai passar

"(...)
De tanto antecipá-la em pensamento, hoje minhas palavras me atrasam.
(...)
Eu não quero que passe. Mas sei que vai passar.
Sei que o amor vai morrer desidratado, faminto, por absoluta falta de cuidado.
Vai passar, infelizmente.
Tudo o que a gente construiu junto vai passar.
Tudo o que a gente idealizou, inventou e armou vai passar.
O lugar no peito que recebia seu rosto para dormir vai passar.
Nossos apelidos, nossos chamados, nossas piadas vão passar.
Por mais que acredite que seja impossível, irei namorar de novo, me apaixonar, casar e rir docemente sem culpa.
Vai passar.
Não superamos os medos, sucumbimos na segunda crise, desistimos de insistir.
Somos fracos, somos influenciáveis, somos tolos.
Foi muita incompetência de nossa parte.
Não seremos inesquecíveis.
Vai passar".

Carpinejar

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

“Amor não tem garantia mas tem devolução. Pode começar do nada, pode acabar de repente, pode não ter fim. Mas tem sempre o meio. O amor é isso que você está vendo: Hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será.”


Caio

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Sou apenas ex

A delicadeza e liberdade de ser ex.
Ser ex é olhar pra trás e dizer: fui, mas já não estou.
É não querer retroceder, nem planejar mais um futuro, mas viver o hoje, assim, livre.
Ser ex é também injusto. Porque é ainda pertencimento.
Quando se diz ex, é manter eternamente um laço com aquilo que já não se é.
Coleciono meus exes. Sou ex-aluna, ex-funcionária, ex-amiga, ex-anônima, ex-ausente.
Sou ex-eu-mesmo. Ex-criança, ex-adolescente, ex-adulta e ex-senhora.
Sou ex nesse instante. Nesse instante mesmo que me perco. Nesse instante mesmo que me des-faço. Desfaço-me em eus, e cada eu que não me volta é um ex de mim mesma.
Não sou eu. Sou apenas ex.

Maysa Sales

sábado, 1 de setembro de 2012

Quanto a mim.
O amor passou.
Peço que não faça como a gente vulgar,
Que não me volte a cara quando passe por si,
Nem tenha de mim uma recordação
Em que entre o rancor.
Fiquemos, um perante o outro,
Como dois conhecidos desde a infância,
Que se amaram um pouco quando meninos,
E, embora na vida adulta
Sigam outras afeições, conservam sempre,
Num escaninho da alma,
A memória profunda do seu amor antigo e inútil

Álvaro de Campos

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Avulso

Meu equilíbrio é tão desequilibrado.

E meu respirar parece cada vez mais tão banal.



E eu estou ficando cada vez mais parecida com você, que é tão diferente de mim.



Maysa



“I enjoy almost everything. Yet I have some restless searcher in me. Why is there not a discovery in life? Something one can lay hands on and say ‘This is it’?”

Virginia Woolf




domingo, 12 de agosto de 2012

Meu it

E os dias têm sido de rastros, suplementos, presenças-ausentes, enxertos, alegorias, metamorfoses, negações, instantes. Resumidamente, tem sido a aurora do it e do instante-já.

"O horrível dever é o de ir até o fim. E sem contar com ninguém. Viver-se a si mesma. E para sofrer menos embotar-me um pouco. Porque não posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer quando sinto totalmente o que outras pessoas são e sentem? Vivo-as mas não tenho mais força. Não quero contar nem a mim mesma certas coisas. Seria trair o é-se. Sinto que sei de umas verdades. Que já pressinto. Mas verdades não têm palavras. Verdades ou verdade? Não vou falar no Deus. Ele é segredo meu.
(...)
Hoje é domingo de manhã. Neste domingo de sol e de Júpiter estou sozinha em casa. Dobrei-me de repente em dois e para a frente como em profunda dor de parto - e vi que a menina em mim omrria. Nunca esquecerei este domingo sangrento. Para cicatrizar levará tempo. E eis-me aqui dura e silenciosa e heroica. Sem menina dentro d mim. Todas as vidas são heroicas.
(...)
O que estraga a felicidade é o medo"

C.L. in Água Viva

sábado, 11 de agosto de 2012

Instranho, liberdade

Estranho é encontrar-se, descobrir-se. Há muitas e muitas ideologias acerca da necessidade (?) de se saber quem somos, o que fazemos no mundo, o que queremos não só dele, mas, principalmente de nós. E é fantástico o momento mesmo da revelação. Diria que é uma espécie mesmo de epifania. É como encontrar pérolas em meio à névoa. É como voltar a pular no parque. É como ser feliz sendo quem se é. Sempre soube de minha liberdade, sempre soube que sou assim, livre. Foi extremamente fantástico, sim, foi fantástico, descobrir-me passarinho. Passarinho estudando, trabalhando, sendo filha, sendo irmã, sendo mulher. Minhas asas são o equilíbrio da minha alma, do meu mais íntimo eu. O que sou e o que faço são para alcançar, viver, desfrutar, degustar, deglutir minha liberdade. Minha liberdade é o que sou, o que tenho. É o meu estranho particular. É minha vidraça quebrada, meu teto de vidro. Cortar minhas asas é latrocínio. Morte súbita. Asfixia. Compro e roubo minha liberdade, deliquentemente e distraidamente. Isso sou eu. E roubar-me de mim é o maior crime que se pode fazer.

"Estou livre? Tem qualquer coisa que ainda me prende. Ou prendo-me a ela? Também é assim: não estou toda solta por estar em união com tudo. Aliás uma pessoa é tudo. Não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo". (C.L in Água Viva)

Maysa Sales

terça-feira, 31 de julho de 2012

Assim, banalmente

Chorei. Assim, banalmente. Sem motivo, ou com ele, não sei direito. Só sei que chorei. E foi estranho, foi intruso, foi como roubar minha segurança. Lágrimas me roubando o que eu sou, invadindo meu lar, invadindo meu sossego. Lendo que estava aquela que é perplexa, angustiada e questionante. Questionei-me também sobre-tudo, e sobre esse nada. E me vi desolada. E me vi acompanhada por aquela que me fez chorar e por aquelas que teimavam em descer meu olhar. A vida é isso. Esse desolar de si mesmo, esse desconhecido que somos a nós. E a vida é esse outro. Esse outro que não é meu, esse outro que sou eu e esse outro que se esconde. Em algum lugar, em qualquer lugar. E que te faz chorar. Assim, banalmente. Como a vida.

Maysa Sales

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Não é

Ando procurando o desenho da vida. Será que é por isso que ando atormentada? Será possível encontrá-lo? Ando assim, por aqui, por acolá, e não consigo me encontrar. Me aborreço por perceber que os dias são iguais, que as tristezas são iguais, que a solidão é unicamente a mesma. O sol ainda aquece e a lua até que ainda brilha, só que as noites continuam escuras. É estranho ver a vida simplesmente passar, junto com tanta gente. Tanta gente que há no mundo, e eu aqui. Tanta gente feliz no mundo, e você aí. E os caminhos continuam ausentes, e as distâncias cada vez mais verdadeiras. Não há aonde ir, nem onde ficar. Nâo faz sentido esses opostos, não faz sentido não estar.
O dever e o esperar na desperfeita simetria e em sua angústia de não pertencer.

Maysa Sales

domingo, 29 de julho de 2012

Experimente me amar

Pode invadir ou chegar com delicadeza, mas não tão devagar que me faça dormir. Não grite comigo, tenho o péssimo hábito de revidar. Acordo pela manhã com ótimo humor mas ... permita que eu escove os dentes primeiro. Toque muito em mim, principalmente nos cabelos e minta sobre minha nocauteante beleza. Tenho vida própria, me faça sentir saudades, conte algumas coisas que me façam rir, mas não conte piadas e nem seja preconceituoso, não perca tempo, cultivando este tipo de herança de seus pais. Viaje antes de me conhecer, sofra antes de mim para reconhecer-me um porto, um albergue da juventude. Eu saio em conta, você não gastará muito comigo. Acredite nas verdades que digo e também nas mentiras, elas serão raras e sempre por uma boa causa. Respeite meu choro, me deixe sozinha, só volte quando eu chamar e, não me obedeça sempre que eu também gosto de ser contrariada. ( Então fique comigo quando eu chorar, combinado?). Seja mais forte que eu e menos altruísta! Não se vista tão bem... gosto de camisa para fora da calça, gosto de braços, gosto de pernas e muito de pescoço. Reverenciarei tudo em você que estiver a meu gosto: boca, cabelos, os pelos do peito e um joelho esfolado, você tem que se esfolar as vezes, mesmo na sua idade. Leia, escolha seus próprios livros, releia-os. Odeie a vida doméstica e os agitos noturnos. Seja um pouco caseiro e um pouco da vida, não de boate que isto é coisa de gente triste. Não seja escravo da televisão, nem xiita contra. Nem escravo meu, nem filho meu, nem meu pai. Escolha um papel para você que ainda não tenha sido preenchido e o invente muitas vezes.

Me enlouqueça uma vez por mês mas, me faça uma louca boa, uma louca que ache graça em tudo que rime com louca: loba, boba, rouca, boca ... Goste de música e de sexo. goste de um esporte não muito banal. Não invente de querer muitos filhos, me carregar pra a missa, apresentar sua familia... isso a gente vê depois ... se calhar ... Deixa eu dirigir o seu carro, que você adora. Quero ver você nervoso, inquieto, olhe para outras mulheres, tenha amigos e digam muitas bobagens juntos. Não me conte seus segredos ... me faça massagem nas costas. Não fume, beba, chore, eleja algumas contravenções. Me rapte! Se nada disso funcionar ... experimente me amar!

Martha Medeiros

sábado, 28 de julho de 2012

É preciso parar

"Estou com saudade de mim. Andou pouco recolhida, atendendo demais ao telefone,escrevo depressa, vivo depressa.Onde está eu? Preciso fazer um retiro espiritual e econtrar-me enfim - enfim, mas que medo - de mim mesma"

C.L. in Aprendendo a viver

segunda-feira, 23 de julho de 2012

"Mais vale uma renúncia dolorosa, que permanecer onde seu coração está morrendo de inanição. A concessão sem limites não é amor, é desespero. É tentar segurar com força alguém que dá indícios de que está indo embora, é a forma mais humilhante de fazer com que ela alargue os próprios passos para longe. Ninguém pode restituir um amor que já foi embora - seria como tentar levar um punhado de água do mar para outra cidade na concha das mãos. A gente se apaixona pelo amor que o Outro tem por ele mesmo, depois pelo amor que descobrimos por nós mesmos. E aí, pelo encontro desses dois amores. Querer que o Outro fique nunca impediu que a porta fosse aberta e fechada logo em seguida, deixando apenas um rastro de perfume e um bocado de dor...".

Marla de Queiroz

domingo, 22 de julho de 2012

Desencontros - em paz

O amor é o nosso próprio desencontro. Ou um encontro desencontrado. Ou ainda uma perdição. Não consigo admiti-lo dentro de mim, mas não consigo deixar que ele me encontre. Ruim com ele, pior sem ele,ou o contrário. E se o contrário progredir para bom? Eis a chave da questão. O que é bom vicia, e tenho muito medo de viciar-me na perfeição. Quantas vezes deixei a benignitude passar, bem diante dos meus olhos. Mas fui cruel, psicopata, assassina, de mim e do (meu) amor. Para que arriscar com o que já tem seu lugar no sofá e na estante? Para que mudá-los de lugar para tirar a poeira do vendaval que passou? Acostumei-me com o não estavél e a calmaria jamais se apegaria a mim. Só que não. Em meus sonhos e na vida real, na verdade, foi o que sempre almejei. A minha calmaria e a minha liberdade unas em uma só felicidade. Porém, deixa assim. A vida e o amor mistificados, intransigentes e escondidos de si e de mim. Incompletos que sempre foram e concretos que jamais serão.

Maysa Sales

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Uma tristeza que acontece alegremente

"Tenho amigos que são tristemente alegres. Eles não conseguiram anular uma tristeza. Ela ficou a endividar o riso. Permanece como uma cicatriz, uma queimadura. Não apaga a água ou as alegrias. Convive junto, sempre. Não arreda pé da sala. Não permite ao rosto se contorcer de exultação. O riso é uma vez por lado, contido, como remos sincronizados. Como se o riso fosse apenas um entristecer dos dentes. Há amigos que pensam nessa tristeza fazendo novas coisas. E a tristeza pensa neles nas horas mais impróprias. Não há como aplacar esse sentimento - ao mesmo tempo - miúdo para ser reparado e extraviado para ser dito. Não é benigno ou maligno. Não é doença, muito menos saúde. É algo que se aprendeu quando não se prestava atenção. Uma tristeza assobiada, sem que conheça o alfabeto para se confessar. Uma tristeza suave, como uma criança que senta diante da máquina de lavar com os mesmos modos de uma televisão. Uma tristeza sem lugar para ir, que se acostumou a personalidade, que seca a louça de manhã. Uma tristeza que é charme, mas não chega a ser simpatia, que convida para a conversa, mas não tem o que falar. Uma tristeza calma, alimentada, que se contenta com pouco, que senta nos degraus da escada e divide os latidos da quadra em casas. Uma tristeza quase subterrânea, um rádio ligado entre duas estações. Não se mistura, não se guarda. Podia ser nostalgia, podia ser saudade, nada é de ambas por não se distanciar. Uma tristeza que arruma a cama e não se deita, envelopa as cartas e não escreve. Uma tristeza que é tremor de frio, um suor desajeitado, uma fisgada no braço, que movimenta os ouvidos involuntariamente. Uma tristeza tímida, não envergonhada. Uma tristeza sábia, que não é excluída com uma outra tristeza maior. Uma fogueira que a pá de terra não abaixa. Uma tristeza que veio de algum estalo, fissura, de um amor sacrificado, de uma amizade desmentida, de uma morte prematura, de uma viagem adiada. Medo de não ter vivido o bastante, covardia de não viver como se deve. Uma tristeza experiente, que não se repete. Que não salva, porém conforta. Que torna a feição séria como quem se escuta. Uma tristeza sem par para dançar. Isolada demais para ser lembrança. Antiga demais para ser futuro. Uma tristeza que acontece alegremente, mas ainda assim tristeza".

Fabrício Carpinejar

quinta-feira, 12 de julho de 2012

"Vê como estamos bem no começo?
Como que antes de tudo. Com
mil e um sonhos para trás e
nada feito.

Não posso imaginar mais feliz sabedoria
do que esta:
que é preciso ser um iniciante.
Alguém que escreve a primeira palavra atrás de um
secular
travessão.

Com essa observação, ocorre-me: que ainda pintamos as pessoas sobre fundo dourado, como os primitivos. Elas estão diante de algo indefinido. Às vezes, diante de fundo ourado, às vezes, de fundo cinza. Contra a luz, vez por outra, e com frequência com uma impenetrável escuridão atrás de si."

Rainer Maria Rilke in: "A melodia das coisas"

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Bobo da corte

Aprendi que... Quantas e quantas vezes afirmamos para nós mesmos isso: que aprendemos. Mas será mesmo que aprendemos? Ou afirmamos isso apenas como uma forma de tentar provar pra nós mesmos que talvez tenhamos quebrado a cara o suficiente para não cometer mais os mesmos erros? Difícil é você errar com você mesmo por conta do erro de outra pessoa. Ah, isso é imperdoável! Quem tem dó do coitado acaba no lugar dele. E isso é bem feito! Bem feito pra você que se compadece diante de qualquer lágrima de crocodilo e sempre dá chances para que as pessoas possam tentar mudar e ser quem você gostaria que elas fossem. E sabe o que você queria que elas fossem? Apenas sinceras o suficiente para não te magoar. Poxa, pedir demais? Esperança tola essa de querer apenas que a pessoa não te magoe. E o pior é quando láaaaaaa na frente (depois de muitas muitas e muitas chances), ela se achar a dona razão e virar o jogo contra você! E sabe o que eu acho? BEM FEITO! Pra que você possa continuar dizendo por aí que "Aprendi que...". Aprendeu sim, a ser mais uma vez vítima de si, das suas fraquezas, sensibilidade e falta de personalidade. Veste logo uma carapuça e assuma, de uma vez por todas, seu papel de bobo da corte.

sábado, 30 de junho de 2012

Fronteira

Beleza do amor.
Querer ser a pureza do amor.
Não quero, tu queres, então rejeitamos
O inaudito, o singelo e o querer
Para além do que se foi
para onde não se vai.
Ali, onde não chove
Ali, onde se retrai
O ontem e a fronteira.
No abismo além
Onde não se foi
Aonde não irei.

Maysa Sales

domingo, 24 de junho de 2012

Uns dizem que a vida é um ciclo, outros que é uma grande máquina. Mas talvez o problema da vida não está em tentar/querer defini-la, o problema está em outro patamar. Está nos dias de angústia, na pressa cotidiana, na luta pela sobre-vivência, no desamparo, no desconsolo. Olhar para trás, para o hoje e o amanhã e perceber que somos consumidos sempre pelos mesmos dilemas e pelas mesmas felicidades também, contrariamente. Difícil é encarar seus próprios medos e receios, que por ora só atormentam e impedem as tantas tomadas de decisão. Porque são muitos caminhos, e nenhuma saída. Pior ainda é ver seus sonhos passarem por você, ou dando adeus ou um sofrível até breve (sem data nem local). Maysa Sales

quarta-feira, 20 de junho de 2012

"Sumi porque só faço besteira em sua presença, fico mudo quando deveria verbalizar, digo um absurdo atrás do outro quando melhor seria silenciar, faço brincadeiras de mau gosto e sofro antes, durante e depois de te encontrar. Sumi porque não há futuro e isso não é o mais difícil de lidar, pior é não ter presente e o passado ser mais fluido que o ar. Sumi porque não há o que se possa resgatar, meu sumiço é covarde mas atento, meio fajuto meio autêntico, sumi porque sumir é um jogo de paciência, ausentar-se é risco e sapiência, pareço desinteressado, mas sumi para estar para sempre do seu lado, a saudade fará mais por nós dois que nosso amor e sua desajeitada e irrefletida permanência". Martha Medeiros

quinta-feira, 14 de junho de 2012

‎' Acho que te devo um pedido de desculpas. É que nem eu mesmo gosto muito de mim, e fico meio assustado quando alguém me diz que consegue isso. É que você parecia minha amiga, só minha amiga. Você fala como uma amiga. Me cumprimenta como amiga. Me telefona e me convida para cinemas como uma amiga. Seu riso é de amiga. O seu abraço é de amiga. Mas eu devia ter desconfiado, seus cabelos sempre tiveram cheiro de namorada. Existe algo errado numa amizade quando o resto do mundo parece chato e nós os únicos legais... ' Trecho de Atos Falhos - Gabito Nunes

quarta-feira, 13 de junho de 2012

"E há momentos também em que alguém diante de você se distingue de sua magnificência, de forma clara e silenciosa. São festas raras, nunca esquecidas por você. A partir daí você ama essa pessoa. Quer dizer: você se esforça por desenhar os contornos de sua personalidade (como você a reconheceu naquele momento) com as suas ternas mãos" Rainer Maria Rilke in A melodia das coisas

terça-feira, 12 de junho de 2012

Saudade

Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, dóem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade. Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, quando se tinha mais audácia e menos cabelos brancos. Dóem essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o aeroporto e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter. Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não saber mais se ela continua clareando o cabelo. Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu. Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango de padaria, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua pescando, se ela continua lhe amando. Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche. Saudade é não querer saber. Não querer saber se ele está com outra, se ela está feliz, se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda assim, doer. Martha Medeiros

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Relacionamentos

Sempre acho que namoro, casamento, romance tem começo, meio e fim. Como tudo na vida. Detesto quando escuto aquela conversa: - 'Ah,terminei o namoro... - 'Nossa,quanto tempo?' ... - 'Cinco anos... Mas não deu certo...acabou' - É não deu...? Claro que deu! Deu certo durante cinco anos, só que acabou. E o bom da vida é que você pode ter vários amores. Não acredito em pessoas que se complementam. Acredito em pessoas que se somam. Às vezes você não consegue nem dar cem por cento de você para você mesmo, como cobrar cem por cento do outro? E não temos esta coisa completa. Às vezes ele é fiel, mas não é bom de cama. Às vezes ele é carinhoso, mas não é fiel. Às vezes ele é atencioso, mas não é trabalhador. Às vezes ela é malhada, mas não é sensível. Tudo nós não temos. Perceba qual o aspecto que é mais importante e invista nele. Pele é um bicho traiçoeiro. Quando você tem pele com alguém, pode ser o papai com mamãe mais básico; que é uma delícia. E as vezes você tem aquele sexo acrobata, mas que não te impressiona... Acho que o beijo é importante...e se o beijo bate... se joga... se não bate...mais um Martini, por favor... e vá dar uma volta. Se ele ou ela não te quer mais, não force a barra. O outro tem o direito de não te querer. Não lute, não ligue, não dê pití. Se a pessoa tá com dúvida, problema dela, cabe a você esperar ou não. Existe gente que precisa da ausência para querer a presença. O ser humano não é absoluto. Ele titubeia, tem dúvidas e medos mas se a pessoa REALMENTE gostar, ela volta. Nada de drama. Que graça tem alguém do seu lado sob chantagem, gravidez, dinheiro, recessão de família? O legal é alguém que está com você por você. E vice versa. Não fique com alguém por dó também. Ou por medo da solidão. Nascemos sós. Morremos sós. Nosso pensamento é nosso, não é compartilhado. E quando você acorda, a primeira impressão é sempre sua, seu olhar, seu pensamento. Tem gente que pula de um romance para o outro. Que medo é este de se ver só, na sua própria compania? Gostar dói. Você muitas vezes vai ter raiva, ciúmes, ódio, frustração. Faz parte. Você namora um outro ser, um outro mundo e um outro universo E nem sempre as coisas saem como você quer... A pior coisa é gente que tem medo de se envolver. Se alguém vier com este papo, corra, afinal, você não é terapeuta. Se não quer se envolver, namore uma planta. É mais previsível. Na vida e no amor, não temos garantias. E nem todo sexo bom é para namorar Nem toda pessoa que te convida para sair é para casar. Nem todo beijo é para romancear. Nem todo sexo bom é para descartar. Ou se apaixonar. Ou se culpar. Enfim...quem disse que ser adulto é fácil? ARNALDO JABOUR

terça-feira, 5 de junho de 2012

De-mora

Sempre pensei que amor fosse uma espécie de felicidade clandestina. Aquela em que você, a todo instante, tenta esquecer o livro, para ter a alegria de reencontrá-lo. Em que você finge que o perdeu só pra sentir o prazer do achamento. Assim, uma volúpia entreachados, entre caminhos martirizantes; a esperança de tê-lo e um falso sorriso dizendo que ele estava em posse de outrem. Seguiu-se com fé, por ora e por adiante, crendo-se, no seu íntimo desejo, de que, sim, ele seria seu. E numa posse estonteante, na demora do por vir, fica-se também no meio-tempo. No tempo não ofuscado, nem meramente adiado, mas preci-o-so. Demorar na futura morada, do ser, do querer e do amar. E seguir, por fim, confiante, amante de si e do amor.

Maysa Sales

terça-feira, 8 de maio de 2012

O ódio é excesso de expectativa

"Pessoas me odeiam ou porquem recusam o meu jeito espalhafatoso ou porque sou teimoso ou porque simplesmente não vão com a minha cara ou porque demorei a responder uma mensagem ou porque não concordaram com uma frase e não ouviram o resto ou porque sou colorado ou porque me conheceram na rua e não me acharam simpático ou porque pinto as unhas ou porque me acham machista ou porque me consideram feminista ou porque me enxergam como romântico ou porque o silêncio cheira a prepotência. A essas pessoas eu gostaria de dizer que vou decepcioná-las de novo. Sou igual a elas, levo uma vida comum, não há nada de diferente e especial". Fabrício Carpinejar

terça-feira, 17 de abril de 2012

Pensar é transgredir

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos.
Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.
Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra pensar, nem pensar!"
O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.
Sem ter programado, a gente pára pra pensar.
Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.
Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.
Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.
Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.

Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.
Parece fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.
Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.
Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.
Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.

Lya Luft

quinta-feira, 12 de abril de 2012

"A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas - escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio."

Clarice Lispector in Água Viva

terça-feira, 3 de abril de 2012

É o amor que fica

Sabe, talvez eu tenha chegado à conclusão de que sempre te amei. E ainda amo. Da forma mais humana, mais egoísta, mais traíra, mais idiota, mais esparançosa. Se eu sempre esperei seu retorno, se eu sempre quis que você viesse a mim, é porque sempre alimentei em mim um amor meu, que eu projetei, que eu gostaria que você tivesse amado. Mas não foi assim. Eu fui adiantada, e você, atrasado. Nossos tempos não se cruzaram. E queria voltar no tempo só pra poder estar ali, deitada no sofá com você, falando bobagens, rindo de idiotices. Só queria estar no seu aconchego, deitada no seu peito, me sentindo a pessoa mais protegida desse mundo. Dormindo e sonhando cm você. Mas não dá. Não deu. Meu amor me sufocou e transbordou até chegar a você... E você se transbordou, nadou no meu amor, mas talvez se afogou.
Ficou sem ar, sem conseguir enxergar. Amor demais cega. Cegamo-nos juntos e não enxergamos nem a nós próprios nem ao outro. E, desnorteados, tropeçamos
e seguimos caminhos opostos.
Me desculpa minha insegurança, minha insensatez,minhas cobranças, de pensar que você tinha que ser perfeito pra mim, sendo que ninguém é.
Me perdoa por ter projetado etantas mil e umas expectativas. Me perdoa por ter sido seu porto in-seguro. Me perdoa por ter querido ser tudo pra você.
Por ter esperado tanto que você fosse único e especial pra mim. Me perdoa só agora entender que ainda te amo, mas que jamais seremos felizes juntos.
E saudade? É o amor que fica. Mesmo. Maysa Sales

segunda-feira, 2 de abril de 2012

‎"Confesso que me dá uma saudade irracional de você. E tenho vontade de voltar atrás, de ligar, de te dizer mil coisas, e cair em suas mãos, sem me importar com nada, simplesmente entregar-te meu coração. Mas não, renuncio, me controlo e digo para mim mesmo que não é assim, que não pode ser, que você se foi, e não volta".

Caio F. Abreu
O choro secou. Um outono doce impera com seu aconchego de amor e lucidez, suaves. E esse abraço aveludado que chegou repentinamente, num calorzinho de cuidados e curas. Não restam mais feridas. A dor perdeu seu lugar na
minha rotina e foi procurar outros rumos. Tenho novos sonhos e um sono novo e profundo. Suavemente tudo mudou de ritmo e celebrei o tempo de cada novo passo. A princípio tive tanta ansiedade, porque tudo parecia um turbilhão, mas de que adianta tentar pular aprendizados? Se é de poesia que o poeta precisa, vamos a ela e não mais à repetição de uma melancolia eterna e bem aprimorada. Chuva e sol, calor e frio: eis o equilíbrio da vida. Se eu nasci com o sorriso mais largo do mundo, não vou entristecer o meu olhar nem anestesiar minha alegria. O choro secou. Já era tempo de prestar mais atenção em outras cores, promover como prediletas outras flores e entrar no mar sem medo, furando a onda com respeito e repetindo a cena com entrega e confiança. Nada ficou fragmentado. Saí inteira e o amor em mim transborda: pele aceitando carícia, olhar brilhando com a menor das delícias. O toque é novo e a respiração tranqüila. Às vezes ainda ofego um pouco, mas quem disse que artista nasceu para sentir pouco? Importante agora é que o choro secou. Antes o meu pranto era cego. Tive que olhar longamente no espelho pra saber o que ainda poderia resgatar de mim. Não quis nada do que restou, quis o meu sorriso novo, minhas portas abertas e a vontade de saltar novamente no desconhecido...

Marla de Queiroz

sábado, 24 de março de 2012

Ãn?

Amor é só isso tudo, né?
E ainda assim não entendi o que ele é. É tudo? É isso? Só isso? Preciso de mais alguma coisa? Uma pitada de sal, de açúcar, ou de qualquer coisa? Esse qualquer coisa pode ser eu? Só eu? Corpo, alma e coração? Isso já é suficiente? Ou precisa mesmo ter o sal?

Maysa Sales

rodeie-me

Talvez esse aroma. Essa brisa estranha ainda me rodeie, talvez alguns desses sorrisos sejam mais destrambelhados que eu mesma, talvez nem eu saiba o que é isso tudo. Talvez nem queira mesmo saber... No final das contas, é sempre aquele rodeio, ciclo de pontas, entre-cortadas. Julgo não saber o inconsciente, pretendo apegar-me ainda mais ao meu vício.

Maysa Sales

quarta-feira, 21 de março de 2012

"...E minha mão esquerda tocava uma ausência sobre a cama.

Tudo isso me perturbava porque eu pensara até então que, de certa forma, toda minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Até então aceitara todas as ausências e dizia muitas vezes para os outros que me sentia um pouco como um álbum de retratos. Carregava centenas de fotografias amarelecidas em páginas que folheava detidamente durante a insônia e dentro dos ônibus olhando pelas janelas e nos elevadores de edifícios altos e em todos os lugares onde de repente ficava sozinho comigo mesmo. Virava as páginas lentamente, há muito tempo antes, e não me surpreendia nem me atemorizava pensar que muito tempo depois estaria da mesma forma de mãos dadas com um outro eu amortecido — da mesma forma — revendo antigas fotografias. Mas o que me doía, agora, era um passado próximo.

Não conseguia compreender como conseguira penetrar naquilo sem ter consciência e sem o menor policiamento: logo eu, que confiava nos meus processos, e que dizia sempre saber de tudo quanto fazia ou dizia. A vida era lenta e eu podia comandá-la. Essa crença fácil tinha me alimentado até o momento em que, deitado ali, no meio da manhã sem sol, olhos fixos no teto claro, suportava um cigarro na mão direita e uma ausência na mão esquerda. Seria sem sentido chorar, então chorei enquanto a chuva caía porque estava tão sozinho que o melhor a ser feito era qualquer coisa sem sentido. Durante algum tempo fiz coisas antigas como chorar e sentir saudade da maneira mais humana possível: fiz coisas antigas e humanas como se elas me solucionassem. Não solucionaram. Então fui penetrando de leve numa região esverdeada em direção a qualquer coisa como uma lembrança depois da qual não haveria depois. Era talvez uma coisa tão antiga e tão humana quanto qualquer outra, mas não tentei defini-la. Deixei que o verde se espalhasse e os olhos quase fechados e os ouvidos separassem do som dos pingos da chuva batendo sobre os telhados de zinco uma voz que crescia numa história contada devagar como se eu ainda fosse menino e ainda houvesse tias solteironas pelos corredores contando histórias em dias de chuva e sonhos fritos em açúcar e canela e manteiga."

CFA
"Eu preciso muito muito de você eu quero muito muito você aqui de vez em quando nem que seja muito de vez em quando você nem precisa trazer maçãs nem perguntar se estou melhor você não precisa trazer nada só você mesmo você nem precisa dizer alguma coisa no telefone basta ligar e eu fico ouvindo o seu silêncio juro como não peço mais que o seu silêncio do outro lado da linha ou do outro lado da porta ou do outro lado do muro.Mas eu preciso muito muito de você."

CFA

terça-feira, 20 de março de 2012

Um pouco de velharia

Ainda estou tentando digerir toda esse resto. Sinto-me enojada e com uma grande vontade de botar para fora tudo isso que sempre me causou náuseas. Não sei o que é pior, conviver com o resto, mas saber que ele está ali, ou simplesmente jogá-lo fora. Por um momento, esta foi a decisão mais sensata. Esse jogar fora foi a única forma de me manter de pé, de não mais me sufocar. E, nessa distância, consigo te ver, verdadeiramente. Não sendo mais resto, mas tentando ser pleno, cantarolando junto às moscas que tu mesmo abominaste. Sorrias, gargalhas, como criança que encontra novos brinquedos. E, assim, nesse joguete, vejo o quanto me deixei ficar presa, estática. Não tive meus brinquedos plenamente, e ainda fizeste questão de roubá-los de mim. De novo. Roubaste a cena de desencanto, e encantas, como sempre foi. Tornei-me lataria, ferrugem, envelhecida. Sem brilho, sem cor, sem chão. Mas, por ironia, ou (im)perfeição, há um velho rádio perto de mim, que soa algumas peripécias. Algumas vezes, ele diz, quase sem voz, que eu não me deixe abalar, que, em breve, tudo será reciclado. Renovar é preciso, minha cara, seu tempo chegará. Aproveite o ofuscamento para rever onde seu brilho se faz necessário. Há luzes ofuscantes, e só as enxerga quem nunca deixou de brilhar. Maysa Sales

segunda-feira, 19 de março de 2012

Perto inominável

"Embora bem perto, em linha reta, do ponto morto, não apressava o passo. Teria podido fazê-lo sem dúvida, mas tinha de me poupar, se tivesse vontade de chegar Não tinha, mas era obrigado a dar o meu melhor, para chegar. Um objetivo desejável, nunca tive tempo de refletir sobre isso. Ir adiante, chamo isso de adiante, sempre fui adiante, senão em linha reta, pelo menos segundo a figura estipulada para mim. Não houve lugar na minha vida para outra coisa. Ainda é Mahood quem fala. Nunca parei. As paradas que fiz não contam. Era a fim de poder continuar. Não as utilizei para meditar sobre a minha condição, mas para me esfregar, o melhor que podia com um bálsamo tranquilizante, por exemplo, ou me dar uma injeção de láudano, operações dificultosas para quem tem só uma perna. Com frequência diziam, Caiu, quando na realidade eu tinha ido abaixo de livre e espontânea vontade, a fim de pode soltar minhas muletas e ter as mãos livres para cuidar de mim como convinha. É verdade que é difícil, para quem tem só uma perna, deitar-se ao chão propriamente falando, sobretudo quando a cabeça é fraca e a coisa aperta e a perna que resta é mole de tanto não servir mais. O mais simples é jogar fora as muletas e desabar. Era o que eu fazia. Logo, tinham razão ao dizer que eu tinha caído, não se enganavam muito. Também me aconteceu de cair sem querer, mas não com frequência, não com frequência, um velho guerreiro como eu, imaginem, não lhe acontece com frequência cair sem querer, ele se deixa cair a tempo"

Samuel Beckett in: o inominável

sexta-feira, 16 de março de 2012

Cli-chê

Depois de um tempo, você demora a descobrir (mas o importante é que descobre) que a vida é feita de extremos mesmo. O que faz bem faz bem, o que não faz: não faz. Simples assim. E descobre, também, o quão isso é clichê e daí você descobre o quão você que é o tolo da parada, que não sacou isso há tempo. E descobre também que você pode repetir várias palavras num mesmo texto, porque a descoberta é tão fascinante que não te permite pensar em sinônimos haha Este não é pra ser um texto melancólico nem engraçado, mas apenas de descobertas. Então, tanto faz. Explicações à parte, a vida é um clicê de descobertas clichês.

Maysa Sales

O ÚLTIMO SUSPIRO É O DA MÃO

"(...)Na despedida, dependemos somente de uma mão segurando a nossa. Tolos ou gênios. Toscos ou eruditos. Todos somente procuram o corrimão de uma amizade. O corrimão de um parente para descer os degraus da morte, suportar a penumbra e não cair desmemoriado nas lembranças.

O último suspiro é o da mão, não da boca. O poeta Goethe não disse 'Licht! Licht! (Luz! Mais Luz!) em sua derradeira exclamação. Foi um lamento prosaico, comum, destinado a sua neta Ottilie: "Me dá sua mão".

A mão de quem a gente ama é a nossa luva. Mas com sangue quente a encurtar os batimentos cardíacos espaçados pelo fim.

A mesma mão de sempre e tão nova.

A mão materna na hora de atravessar a rua. A mão paterna mexendo de orgulho nossos cabelos. A mão da caligrafia dos cadernos, com a cabeça inclinada na mesa. A mão brincando com o graveto na boca do cachorro. A mão boba no cinema. A mão para levantar o véu branco da esposa. A mão ansiosa a segurar o primeiro passo do filho.

A mão assustada de ternura. Ossuda, magra, com as veias azuis pedindo passagem. Envelhecida, absolutamente carente, que vai acenar de verdade apertando outra mão". Carpinejar

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por
sina cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
redunda.

Drummond

segunda-feira, 12 de março de 2012

Que a noite me abrace e me dê o colo que preciso para me desvencilhar do dia que esboçou algum aborrecimento. Felizmente, minhas emoções estão mais precisas, posso ver com mais clareza e, ao identificá-las, posso extirpar o barulho mental, os ruídos internos e perdoar quem tentou chamar minha atenção de maneira nociva e infantil. É preciso entender que cada um se manifesta de maneira diferente diante daquilo que sente e que podemos nos posicionar e aceitar sem compreender, mas nos blindar de qualquer coisa que diminua nossa vibração energética ou atinja a nossa espiritualidade. Aceito estar vulnerável para o amor, para a entrega ao desconhecido, para o mergulho no pré-sentimento bom...Mas não admito que o Outro tenha poder para me ferir, pois conheço minha força e o meu poder de superação. E, no meu cotidiano, toda a minha ocupação está na minha vontade de ser melhor, estar feliz e poder estender a mão quando tiver algo para oferecer. Interessante seria se as pessoas que sofrem por quaisquer motivos, procurassem ajuda ou praticassem gestos de generosidade...Quem acha que o Universo reside no próprio umbigo, não enxerga o horizonte que existe a ser explorado dentro e fora de si.

Marla de Queiroz

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A(os)deus(es)

Eu posso omitir sua despedida. Guardá-la para mais tarde, depois do chá, quem sabe. Mas o sol já despontou e não dá para aguardar novamente a lua cheia. Então tivemos que estar assim, aumentando um a cicatriz do outro. Autoflagelação, ou autorremediação. Não sei. Nunca soube. Nunca tive os pés no chão, mas também não cheguei a voar. Talvez tenha até ameaçado vôo, mas não deu, você não me deu, seu ouro, sua voz, seu perfume e seu olhar. Incompleto também estava e assim permaneceu, numa constante (in)stabilidade. Não sei de onde, nem quando as pessoas começaram a querer essa coisa chamada amor. Amor que deve ser perfeito, harmônico, sobrenatural. Além de si, além do outro, além de tudo. Além mesmo do que você pode oferecer. E fica assim, esse eterno vício, em débito. Depois, é claro, de creditar tantas mil e frustradas esperanças. Eu sempre esperei a sua volta, a sua ida até mim. O seu mais perfeito e completo amor. Mas você chegou atrasado, três vezes atrasado. Agora já estou arrumada, pronta para embarcar. Seu perfume ainda está impregnado em mim, até que um dia outro beija-flor devolva meu cheiro. [Estarei lá, quem sabe, te esperando, com um olhar solitário e um vazio, companheiros meus de sempre]. Não deu. Não tinha que ser. E você se foi, com os olhos cheios e o coração também. E você vai tentar me esquecer, só que seu coração ainda estará ali, batendo tão ardentemente por mim, como você mesmo falou. Maysa Sales

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Extravios

"Eu te agradeço por esse afastamento lento e gradual e pela viagem interrompida por seus perpétuos atrasos causados pelo medo de tirar os pés do chão. Agora, a cada dia eu preciso de uma roupa nova desde que minhas malas foram extraviadas para sempre com todo o nosso excesso de bagagem.
Eu te agradeço pela honestidade da sua omissão tão previsível que sempre confundi com meus presságios. Essa ida sem despedida que você covardeou: eu finjo que não sei, você finge que não foi.E a gente segue inventando que ainda se interessa pelo que começamos a construir juntos, num outro contexto, pra realçar nossos vínculos.

Eu te agradeço a descoberta de que se não seguimos juntos nessas coisas do amor,
seja porque talvez
eu, veterana
enquanto
você ama-dor."

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Sob a vida

"A vida é tão grande, mas só poucas coisas estão lá dentro, uma por eternidade. Isso amedronta e cansa, essas transições. Quando criança estive na Itália. Não me lembro muito. Mas lá no campo, quando se pergunta a um camponês, no meio do caminho: 'Quanto tempo demora até a aldeia?'. 'Un' mezz'ora', diz ele. E o próximo, a mesma coisa, e o terceiro também, como se combinados. E caminha-se o dia inteiro e não se chega à aldeia. Assim é na vida.Mas no sonho tudo está muito perto. Não temos nenhum medo. Na verdade, fomos feitos para o sonho,não temos os órgãos necessários à vida, mas somos como peixes, que só pensam em voar. O que se há de fazer?"

Rainer Maria Rilke in: A melodia das coisas