Distribuir palavras talvez possa ser fraqueza e deixa à mostra do inimigo alguma insensatez. Melhor não dizer. Melhor calar-se e mostrar-se sorrateiramente. Deixa assim, o dito pelo não-dito. E ficamos bem.

sábado, 24 de março de 2012

Ãn?

Amor é só isso tudo, né?
E ainda assim não entendi o que ele é. É tudo? É isso? Só isso? Preciso de mais alguma coisa? Uma pitada de sal, de açúcar, ou de qualquer coisa? Esse qualquer coisa pode ser eu? Só eu? Corpo, alma e coração? Isso já é suficiente? Ou precisa mesmo ter o sal?

Maysa Sales

rodeie-me

Talvez esse aroma. Essa brisa estranha ainda me rodeie, talvez alguns desses sorrisos sejam mais destrambelhados que eu mesma, talvez nem eu saiba o que é isso tudo. Talvez nem queira mesmo saber... No final das contas, é sempre aquele rodeio, ciclo de pontas, entre-cortadas. Julgo não saber o inconsciente, pretendo apegar-me ainda mais ao meu vício.

Maysa Sales

quarta-feira, 21 de março de 2012

"...E minha mão esquerda tocava uma ausência sobre a cama.

Tudo isso me perturbava porque eu pensara até então que, de certa forma, toda minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Até então aceitara todas as ausências e dizia muitas vezes para os outros que me sentia um pouco como um álbum de retratos. Carregava centenas de fotografias amarelecidas em páginas que folheava detidamente durante a insônia e dentro dos ônibus olhando pelas janelas e nos elevadores de edifícios altos e em todos os lugares onde de repente ficava sozinho comigo mesmo. Virava as páginas lentamente, há muito tempo antes, e não me surpreendia nem me atemorizava pensar que muito tempo depois estaria da mesma forma de mãos dadas com um outro eu amortecido — da mesma forma — revendo antigas fotografias. Mas o que me doía, agora, era um passado próximo.

Não conseguia compreender como conseguira penetrar naquilo sem ter consciência e sem o menor policiamento: logo eu, que confiava nos meus processos, e que dizia sempre saber de tudo quanto fazia ou dizia. A vida era lenta e eu podia comandá-la. Essa crença fácil tinha me alimentado até o momento em que, deitado ali, no meio da manhã sem sol, olhos fixos no teto claro, suportava um cigarro na mão direita e uma ausência na mão esquerda. Seria sem sentido chorar, então chorei enquanto a chuva caía porque estava tão sozinho que o melhor a ser feito era qualquer coisa sem sentido. Durante algum tempo fiz coisas antigas como chorar e sentir saudade da maneira mais humana possível: fiz coisas antigas e humanas como se elas me solucionassem. Não solucionaram. Então fui penetrando de leve numa região esverdeada em direção a qualquer coisa como uma lembrança depois da qual não haveria depois. Era talvez uma coisa tão antiga e tão humana quanto qualquer outra, mas não tentei defini-la. Deixei que o verde se espalhasse e os olhos quase fechados e os ouvidos separassem do som dos pingos da chuva batendo sobre os telhados de zinco uma voz que crescia numa história contada devagar como se eu ainda fosse menino e ainda houvesse tias solteironas pelos corredores contando histórias em dias de chuva e sonhos fritos em açúcar e canela e manteiga."

CFA
"Eu preciso muito muito de você eu quero muito muito você aqui de vez em quando nem que seja muito de vez em quando você nem precisa trazer maçãs nem perguntar se estou melhor você não precisa trazer nada só você mesmo você nem precisa dizer alguma coisa no telefone basta ligar e eu fico ouvindo o seu silêncio juro como não peço mais que o seu silêncio do outro lado da linha ou do outro lado da porta ou do outro lado do muro.Mas eu preciso muito muito de você."

CFA

terça-feira, 20 de março de 2012

Um pouco de velharia

Ainda estou tentando digerir toda esse resto. Sinto-me enojada e com uma grande vontade de botar para fora tudo isso que sempre me causou náuseas. Não sei o que é pior, conviver com o resto, mas saber que ele está ali, ou simplesmente jogá-lo fora. Por um momento, esta foi a decisão mais sensata. Esse jogar fora foi a única forma de me manter de pé, de não mais me sufocar. E, nessa distância, consigo te ver, verdadeiramente. Não sendo mais resto, mas tentando ser pleno, cantarolando junto às moscas que tu mesmo abominaste. Sorrias, gargalhas, como criança que encontra novos brinquedos. E, assim, nesse joguete, vejo o quanto me deixei ficar presa, estática. Não tive meus brinquedos plenamente, e ainda fizeste questão de roubá-los de mim. De novo. Roubaste a cena de desencanto, e encantas, como sempre foi. Tornei-me lataria, ferrugem, envelhecida. Sem brilho, sem cor, sem chão. Mas, por ironia, ou (im)perfeição, há um velho rádio perto de mim, que soa algumas peripécias. Algumas vezes, ele diz, quase sem voz, que eu não me deixe abalar, que, em breve, tudo será reciclado. Renovar é preciso, minha cara, seu tempo chegará. Aproveite o ofuscamento para rever onde seu brilho se faz necessário. Há luzes ofuscantes, e só as enxerga quem nunca deixou de brilhar. Maysa Sales

segunda-feira, 19 de março de 2012

Perto inominável

"Embora bem perto, em linha reta, do ponto morto, não apressava o passo. Teria podido fazê-lo sem dúvida, mas tinha de me poupar, se tivesse vontade de chegar Não tinha, mas era obrigado a dar o meu melhor, para chegar. Um objetivo desejável, nunca tive tempo de refletir sobre isso. Ir adiante, chamo isso de adiante, sempre fui adiante, senão em linha reta, pelo menos segundo a figura estipulada para mim. Não houve lugar na minha vida para outra coisa. Ainda é Mahood quem fala. Nunca parei. As paradas que fiz não contam. Era a fim de poder continuar. Não as utilizei para meditar sobre a minha condição, mas para me esfregar, o melhor que podia com um bálsamo tranquilizante, por exemplo, ou me dar uma injeção de láudano, operações dificultosas para quem tem só uma perna. Com frequência diziam, Caiu, quando na realidade eu tinha ido abaixo de livre e espontânea vontade, a fim de pode soltar minhas muletas e ter as mãos livres para cuidar de mim como convinha. É verdade que é difícil, para quem tem só uma perna, deitar-se ao chão propriamente falando, sobretudo quando a cabeça é fraca e a coisa aperta e a perna que resta é mole de tanto não servir mais. O mais simples é jogar fora as muletas e desabar. Era o que eu fazia. Logo, tinham razão ao dizer que eu tinha caído, não se enganavam muito. Também me aconteceu de cair sem querer, mas não com frequência, não com frequência, um velho guerreiro como eu, imaginem, não lhe acontece com frequência cair sem querer, ele se deixa cair a tempo"

Samuel Beckett in: o inominável

sexta-feira, 16 de março de 2012

Cli-chê

Depois de um tempo, você demora a descobrir (mas o importante é que descobre) que a vida é feita de extremos mesmo. O que faz bem faz bem, o que não faz: não faz. Simples assim. E descobre, também, o quão isso é clichê e daí você descobre o quão você que é o tolo da parada, que não sacou isso há tempo. E descobre também que você pode repetir várias palavras num mesmo texto, porque a descoberta é tão fascinante que não te permite pensar em sinônimos haha Este não é pra ser um texto melancólico nem engraçado, mas apenas de descobertas. Então, tanto faz. Explicações à parte, a vida é um clicê de descobertas clichês.

Maysa Sales

O ÚLTIMO SUSPIRO É O DA MÃO

"(...)Na despedida, dependemos somente de uma mão segurando a nossa. Tolos ou gênios. Toscos ou eruditos. Todos somente procuram o corrimão de uma amizade. O corrimão de um parente para descer os degraus da morte, suportar a penumbra e não cair desmemoriado nas lembranças.

O último suspiro é o da mão, não da boca. O poeta Goethe não disse 'Licht! Licht! (Luz! Mais Luz!) em sua derradeira exclamação. Foi um lamento prosaico, comum, destinado a sua neta Ottilie: "Me dá sua mão".

A mão de quem a gente ama é a nossa luva. Mas com sangue quente a encurtar os batimentos cardíacos espaçados pelo fim.

A mesma mão de sempre e tão nova.

A mão materna na hora de atravessar a rua. A mão paterna mexendo de orgulho nossos cabelos. A mão da caligrafia dos cadernos, com a cabeça inclinada na mesa. A mão brincando com o graveto na boca do cachorro. A mão boba no cinema. A mão para levantar o véu branco da esposa. A mão ansiosa a segurar o primeiro passo do filho.

A mão assustada de ternura. Ossuda, magra, com as veias azuis pedindo passagem. Envelhecida, absolutamente carente, que vai acenar de verdade apertando outra mão". Carpinejar

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por
sina cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
redunda.

Drummond

segunda-feira, 12 de março de 2012

Que a noite me abrace e me dê o colo que preciso para me desvencilhar do dia que esboçou algum aborrecimento. Felizmente, minhas emoções estão mais precisas, posso ver com mais clareza e, ao identificá-las, posso extirpar o barulho mental, os ruídos internos e perdoar quem tentou chamar minha atenção de maneira nociva e infantil. É preciso entender que cada um se manifesta de maneira diferente diante daquilo que sente e que podemos nos posicionar e aceitar sem compreender, mas nos blindar de qualquer coisa que diminua nossa vibração energética ou atinja a nossa espiritualidade. Aceito estar vulnerável para o amor, para a entrega ao desconhecido, para o mergulho no pré-sentimento bom...Mas não admito que o Outro tenha poder para me ferir, pois conheço minha força e o meu poder de superação. E, no meu cotidiano, toda a minha ocupação está na minha vontade de ser melhor, estar feliz e poder estender a mão quando tiver algo para oferecer. Interessante seria se as pessoas que sofrem por quaisquer motivos, procurassem ajuda ou praticassem gestos de generosidade...Quem acha que o Universo reside no próprio umbigo, não enxerga o horizonte que existe a ser explorado dentro e fora de si.

Marla de Queiroz