Distribuir palavras talvez possa ser fraqueza e deixa à mostra do inimigo alguma insensatez. Melhor não dizer. Melhor calar-se e mostrar-se sorrateiramente. Deixa assim, o dito pelo não-dito. E ficamos bem.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Um ponto solto, entre

Hoje me peguei pensando em tanta coisa.
E coisa integra um mundo inteiro de palavras ditas e não ditas.
Dessas que escondem aquilo que não se quer mostrar.
Me vi agraciada. E ri sozinha. Cantando aquela música brega que tocava no rádio.
E até observei o quanto ela era linda.
Enxergar a beleza às vezes é uma falta de tropeço.
Esbarrar-se em suas próprias angústias é um pouquinho de fortaleza.
Vim sentindo aquela energia de um sol que ainda estava escondido em meio às estrelas.
E tentei enxergá-las com a mesma precisão de um cego.
Quanta luz vinda dos automóveis. Que não sei pra onde é que vão tanto.
Correndo sempre demais... Para se chegar talvez, sempre, ao mesmo lugar.
Queria também desintegrar esses blocos de raios, mas sou tanto humana quanto aquela rosa que murchou.
Queria poder "ver no escuro do mundo..." e descobrir, quem sabe, "quais são as cores e as coisas"...
Mas para que tanto? Basta a graciedade dessas tantas coisas,
que, bem lá no fundo, se coisificam, nisso, que chamamos de amor.

Maysa Sales

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Via Láctea

"Saia desta vida de migalhas
Desses homens que te tratam
Como um vento que passou

Caia na realidade, fada
Olha bem na minha cara
Me confessa que gostou
Do meu papo bom
Do meu jeito são
Do meu sarro, do meu som
Dos meus toques pra você mudar

Pára de fingir que não repara
Nas verdades que eu te falo
Dê um pouco de atenção

Parta, pegue um avião, reparta
Sonhar só não dá em nada
É uma festa na prisão

Nosso tempo é bom
E nem vemos de montão
Deixa eu te levar então
Pra onde eu sei que a gente vai brilhar"


A vida é como aquele texto engasgado, no meio da garganta.
Não entra ar o que acabou de sair, nem sai o ar que acabou de entrar.
Às vezes o que precisamos na vida é engasgar-se.
Pra ver até onde ainda tem ar e pra ver onde ainda tem saliva.
Mas o medo nos bloqueia e corrompe todas as veias.
E há quem prefira não lidar com o imprevisível tão belo.

Maysa Sales

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Vivo-morto

Por que vivo morto?
Tem gente que enquanto vive morre um pouquinho a cada dia.
Tem gente que morre e vive infinitamente mais.
Naquela foto, naquela carta, naquela lembrança.
No porta-retrato vazio e tão cheio de um amanhã que não chegou.
Naquela despedida fria e morna.
Ou naquela despedida que nem aconteceu.
E que morreu sufocada.
De olhares que se calaram, de vozes que se abafaram.
Do aperto profundo daquele peito.
De anéis jogados ao vento.
De lembranças desenraízadas e desmemoriadas.
Vidas que gritam por tanto amanhã e gritos mortos de tanto passado.
Holograma. Está, mas não está. Se desfaz, se irrompe, não reverbera.
Ou reverbera. Naquele momento em que é para sempre.
Para nunca.
Enterrar é doloroso é ratificar para si que acabou. Fim da linha.
Game over. Deadline.

Maysa Sales


sábado, 8 de junho de 2013

Retrato (ovalouvira) - Please save me the waltz

A Sérgio Keuchgerian
Porto Alegre, 10 de agosto de 1985.

“'... isso que chamamos de amor, esse lugar confuso entre o sexo e a organização familiar...'
Sérgio, não sabia como começar — então comecei copiando essa frase aí de cima, é Caetano Veloso numa entrevista ao JB (...)

Quase não dormi. E não consigo tirar você da cabeça. Estou te escrevendo porque não consigo tirar você da cabeça. Hesito em dizer qualquer coisa tipo me-perdoe ou qualquer coisa assim. Mas quero te contar umas coisas. Mesmo que a gente não se veja mais. Penso em você, penso em você com força e carinho. Axé. Foi mau, ontem. Fui mau, também. Menos com você, mais comigo mesmo. Depois não consegui dormir. Me bati pela casa até quase oito da manhã. Teria telefonado para você, não fosse tão inconveniente. Acabei ligando para Grace, pedi paciência, chorei, contei, ouvi.

Não era nada com você. Ou quase nada. Estou tão desintegrado. Atravessei o resto da noite encarando minha desintegração. Joguei sobre você tantos medos, tanta coisa travada, tanto medo de rejeição, tanta dor. Difícil explicar. Muitas coisas duras por dentro. Farpas. (...) Não queria fazer mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar absolutamente nada. Porque o zen de repente escapa e se transforma em sem?

Sem que se consiga controlar. Te escrevo com um cigarro aceso e uma xícara de chá de boldo. A escrivaninha é muito antiga, daquelas que têm uma tampa, parece piano. (...) Please, save me the waltz. Fiz fantasias. No meu demente exercício para pisar no real, finjo que não fantasio. E fantasio, fantasio. Até o último momento esperei que você me chamasse pelo telefone. Que você fosse ao aeroporto.

(...)

Quando pergunto você-compreende-tudo-isso não estou subestimando você. Quando pergunto se você quer que eu leia suas histórias, ah deus, perdoe. Não sinto agressividade nenhuma em relação a você. E gosto das tuas histórias. E gosto da tua pessoa. Dá um certo trabalho decodificar todas as emoções contraditórias, confusas, somá-las, diminuí-las e tirar essa síntese numa palavra só, esta: gosto. Dormi umas três horas e acordei ouvindo Quereres, de Caetano. Repeti, várias vezes, cada vez mais alto. Ah, bruta flor, bruta flor do querer. Discutia tanto com Ana Cristina Cesar, antes que ela acolhesse a morte (acertadamente? me pergunto até hoje, nunca sei responder): nossa necessidade fresca & neurótica de elaborar sofrimentos e rejeições e amarguras e pequenos melodramas cotidianos para depois sentar Atormentado & Solitário para escrever Belos Textos Literários.

O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de reflexos, espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável. Você me dizia 'que diferença entre você e um livro seu'. Eu não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos jeitos. Alguns estranhos.

Não há nenhum subtexto nisto que te escrevo. Não acho bonito que a gente se disperse assim, só isso. Encontre, desencontre e nada mais, nunca mais, é urbano demais — e eu nasci praticamente no campo, até os 15 anos quase no campo, céu e campo. Não sei se a gente pode continuar amigo. Não sei se em algum momento cheguei a ver você completamente como Outra Pessoa, ou, o tempo todo, como Uma Possibilidade de Resolver Minha Carência. Estou tentando ser honesto e limpo. Uma Possibilidade que eu precisava devorar ou destruir. Porque até hoje não consegui conquistar essa disciplina, essa macrobiótica dos sentimentos, essa frugalidade das emoções. Fico tomado de paixão. Há tempos não ficava. E toda essa peste, meu amigo. O que tem me mantido vivo hoje é a ilusão oua esperança dessa coisa, “esse lugar confuso”, o Amor um dia. E de repente te proíbem isso. Eu tenho me sentido muito mal vendo minha capacidade de amar sendo destroçada, proibida, impedida, aos 36 anos, tão pouco. Nem vivi nada ainda. E não sou, sequer promíscuo. Dum romantismo não pós, mas pré todas as coisas — um romantismo que exige sexualidade e amor juntos. Nunca consegui. Uns vislumbres, visões do esplendor. Me pergunto se até a morte — será? Será amor essa carência e essa procura de amor, nunca encontrar a coisa?

(...) Olhei no espelho e aquela ruga entre as sobrancelhas se desfez. Não quero me tornar uma pessoa pesada, frustrada, amarga. Não vou me tornar assim. Então vacilo, escorrego e a mania de perfeição virginiana e a estética libriana no dia seguinte me dizem “que vergonha, que vergonha, que vergonha”. Eu podia dizer que tinha/tínhamos bebido demais. Eu podia dizer que estava com tanto medo de vir para Porto Alegre. Eu podia contar a você dos meus últimos meses, oito, dez, doze horas por dia sobre a máquina de escrever, falando com quase ninguém. Sozinho, às vezes. Cantando também. Tudo isso, se eu te dissesse, talvez tivesse ajudado a doer menos em você. De repente me passa pela cabeça que você pode estar detestando tudo isso, e achando longo e choroso e confuso. Mas eu não quero ter vergonha de nada que eu seja capaz de sentir. Tento não ficar assustado com a idéia que este tempo aqui é curto, que vou voltar a São Paulo e que talvez não veja mais você.

Sei que não fic oassustado demais, e enfrento, e reconstituo os pedaços, a gente enfeita o cotidiano— tudo se ajeita. Menos a morte.Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas. Uma lembrança boa de você,uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar: de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo.(...) Somos muito parecidos, de jeitos inteiramente diferentes: somos espantosamente parecidos. E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar de mim — para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura.

Perdoe a minha precariedade e as minhas tentativas inábeis, desajeitadas, de segurar a maçã no escuro. Me queira bem. Estou te querendo muito bem neste minuto. Tinha vontade que você estivesse aqui e eu pudesse te mostrar muitas coisas, grandes, pequenas, e sem nenhuma importância, algumas.

Fique feliz, fique bem feliz, fique bem claro, queira ser feliz. Você é muito lindo e eu tento te enviar a minha melhor vibração de axé. Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro. Mas que seja bom o que vier, para você, para mim. Com cuidado, com carinho grande, te abraço forte e te beijo

Caio F.
PS — Te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos descartáveis. E amanhã tem sol.".


Caio Fernando Abreu in Cartas




domingo, 26 de maio de 2013

cara puul(ça)sa

Um sorriso ainda bem destrambelhado
ainda pulsa e
impulsa e
empapulsa e
convulsa e
soluça e
carapuça!

Maysa Sales

domingo, 19 de maio de 2013

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Ineterno



(from Coimbra)

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Atrasamento


Chegar tarde é também chegar
Ir, mesmo que atrasado
Ainda que o tempo fosse outro
Mesmo em adiantamento
Eu estaria ali, pra você.
Nossos caminhos foram paralelos, mas se cruzaram.
Naquela ordem em que impera a imperfeição,
o frio na barriga, o suor pelas mãos.
Tinha de ser assim, nos 48 minutos do segundo tempo,
sem chance para os penaltys
Não vou te esperar, nem você estará lá em cima esperando por mim.
A ordem dos personagens são outras, e nessa de ser antagonista, morri.
O palco escurecerá, as cadeiras se esvaziarão.
E restará apenas meu corpo em lágrimas e em chamas.
E você ali, do alto da capela, estendendo a mão e o coração
para sempre
para o eterno
talvez.

Maysa Sales




"Nisso eu escuto no rádio do carro a nossa canção
(Vento solar e estrelas do mar)
Sol girassol e meus olhos ardendo de tanto cigarro
E quase que eu me esqueci que o tempo não pára nem vai esperar"



segunda-feira, 22 de abril de 2013

Multiface

Um dia ouvi que eu era a pessoa mais importante para alguém. Na época, aquilo era essencial para mim: ser promovida pela reciprocidade. E o tempo, imperador dos destinos todos, desgastou os mármores, mas manteve intacto aquele amor: ele sobreviveu à relação finda. E eu perdera o meu alto cargo de importância para aquele alguém. Convalescente, mas em recuperação da suposta infelicidade de um ego magoado, tive que descobrir outra forma de amor: uma espécie rara que dá perenidade ao bem-estar e põe o ego em seu lugar. Eu me tornei a pessoa mais importante para mim. Quem poderia me tomar isto? O tempo? Hoje, as pessoas vão e vêm. Recebo-as, rejeito-as, tolero ou amo. A poesia não me tira os sentimentos vis, nem as doçuras de um ser humano. Um dia me chamaram de radical. Aceitei: só eu sei a importância que as coisas têm para mim e o propósito de mantê-las ou não na minha vida. Em outra ocasião, me chamaram de amorosa. Compreendi: pessoas amoráveis extraem o que tenho de melhor. Já me disseram que pareço um personagem. Entendi: sendo povoada por tantas, quão imprevisível posso ser na liberdade que me permito ter. Não me importo com o que julgam, sempre serei espelho e sempre terei o Outro como meu espelho. Somos extensão. Estejamos ou não em harmonia ou comunhão, dedico carinhosamente o meu tempo compartilhando minha nudez. Aos que veem máscaras e vestes, sou impotente a estas leituras. Aos que veem generosidade e amparo, sou impotente à beleza que me dão. Sou impotente ao olhar alheio. Não tenho o controle de absolutamente nada, mas o meu trabalho consiste em eu não me rejeitar.

Diariamente eu fortaleço minha autoestima assim:
Hoje, nem que seja apenas hoje, eu sou a pessoa mais importante para mim.

Que assim eu esteja.

Que assim seja.

Marla de Queiroz

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Pra acabar

... Mais ínfimo, mais secreto, mais banal.
O amor. É tão pequeno, tão miúdo, tão abstrato, que não cabe na concha das mãos, e se engana quem acha que ele cabe no coração. Ele cabe em si e ponto. Não se deixa ficar, não cria ninho. Ele vira sangue, água, luz, escuridão. Se o homem ainda não descobriu a fórmula de ser mutante, é só perguntar pro amor. Com certeza, ele terá a resposta na ponta da língua. O amor é muito é confuso, ah, isso sim. Porque ele vai além da vida. E além da morte. É além dos sentidos. E além do ser. Ele vai, volta, repousa, anda, cospe, chove, não molha, reproduz e nasce. E se recria e se reinventa. Voa, viaja, cai de paraquedas, vai a Marte e ao Japão. Vira rima, vira verso, vira ponto de interrogação. E não se permite começar nem acabar.

Maysa Sales



Amor, então
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa

Paulo Leminski in Caprichos e relaxos

domingo, 31 de março de 2013

Ponto de partida

"Mas pondo-se de pé o homem inesperadamente retomou toda a estatura do próprio corpo. O que lhe deu automaticamente certa empáfia como se, ao erguer-se,ele tivesse inaugurado o descampado. E apesar dos ombros curvos, sentiu-se dominando a extensão e disposto a segui-la. embora estivesse cego pela luz: ali nenhum de seus sentidos lhe valia, e aquela claridade o desnorteava mais do que a escuridão da noite. Qualquer direção era a mesma rota vazia e iluminada, e ele não sabia que caminho significaria avançar ou retroceder. Na verdade, em qualquer lugar onde o homem experimentou se pôr de pé, ele próprio se tornou o centro do grande círculo, e o começo apenas arbitrário de um caminho.
Mas desde que, há duas semanas, aquele homem experimentara o poder de um ato, parecia também ter passado a admitir a estúpida liberdade em que se achava. Sem um pensamento de resposta, pois, suportou imóvel o fato de ele ser o único próprio ponto de partida.
Então, como se contemplasse pela última vez antes de partir o lugar onde sua casa fora incediada, Martim olhou o grande vazio ensolarado. Ele bem viu. E ver era o que podia fazer. O que fez com certo orgulho, de cabeça erguida. Em duas semanas tinha recuperado um orgulho natural e, como uma pessoa que não pensa, tornara-se autossuficiente".

Clarice Lispector in A maçã no escuro.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Aleatório

É preciso se jogar no mar pra aprender a nadar




....








Nem sabe meus defeitos pra me amar.





Maysa...


Sales

segunda-feira, 18 de março de 2013

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Suspiros & Café - rastro do porvir

De onde veio, de onde começou
Aonde ainda se vai
Aleatoriamente, foi daí que apareceu
Num curta, em brevidade.
E o nome de algo já duas vezes nomeadamente fracasso
"Tudo de nada", e um outro de que não me lembro mais.
E hoje, como num relapso, ou num descontentamento
À memória. In memoriam.
De fagulhas que se destroçaram(am)
E a luz acabou-se, a chuva mantinha-se teimosa
E um olhar por entre uma chama, ainda tão persistente.
Na espera da luz, que interrompeu o carregamento do previsível, o para sempre (im)produtível.

Maysa Sales




"Vereis que, pouco a pouco, as letras vão rolar do
próprio nome:
amor sem m.
amor sem o.
amor sem r.
amor sem a.
fica o silêncio em que vos dareis uma à outra ponto
final da chama"

Maria Gabriela Llansol

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Fica


And every time I hold you
The things Inever told you
 Seem to come easily,
 cause you're everything to me







terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Do amor contente e muito descontente

Tenho pedido a todos que descansem
De tudo o que cansa e mortifica:
O amor, a fome, o átomo, o câncer.
Tudo vem a tempo no seu tempo.
Tenho pedido às crianças mais sossego
Menos riso e muita compreensão para o brinquedo
O navio não é trem, o gato não é guizo.

Quero sentar-me e ler nesta noite calada.
A primeira vez que li Franz Kafka
Eu era uma menina. (A família chorava).
Quero sentar-me e ler mas o amigo me diz:
O mundo não comporta tanta gente infeliz.

Ah, como cansa querer ser marginal
Todos os dias.
Descansem anjos meus. Tudo vem tempo
No seu tempo. Também é bom ser simples.
É bom ter nada. Dormir sem desejar,
Não ser poeta. Ser mãe. Se não puder ser pai.
Tenho pedido a todos que descansem
De tudo o que cansa e mortifica.
Mas o homem não cansa.

Hilda Hilst

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Não sabe

Ele não sabe mais nada sobre mim. Não sabe que o aperto no meu peito diminuiu, que meu cabelo cresceu, que os meus olhos estão menos melancólicos, mas que tenho estado quieta, calada, concentrada numa vida prática e sem aquela necessidade toda de ser amada. Ele não sabe quantos livros pude ler em algumas semanas. Não sabe quais são meus novos assuntos nem os filmes favoritos. (...) Ele nem imagina quanta coisa pude planejar durante esses dias todos e como me isolei pra tentar organizar todos os meus projetos. Ele não sabe quantos amigos desapareceram desde que me desvencilhei da minha vida social intensa. Que tenho sentido mais sono e, ainda assim, dormido pouco. Que tenho escrito mais no meu caderno de sonhos. Que aqui faz tanto frio, ele não sabe por mim. Ele não sabe que eu nunca mais me atentei pra saudade. Que simplesmente deixei de pensar em tudo que me parecia instável. Que aprendi a não sobrecarregar meu coração, este órgão tão nobre. (...) Hoje foi um dia em que percebi quanta coisa em mim mudou e ele não sabe sobre nada disso. Ele não sabe que tenho estado tão só sem a devastadora sensação de me sentir sozinha. Ele não sabe que desde que não compartilhamos mais nada sobre nós, eu tive que me tornar minha melhor companhia: ele nem imagina que foi ele quem me ensinou esta alegria.

Marla de Queiroz

Xícara de café

Minha xícara de café preferida é você.
Você que não é branca, pra não tirar a cor do café. Nem preta para não se misturar a ele. Mas na cor certa, que é para não tirar o foco.
Você também é meu café. Porém insolúvel. E até te trocaria pelo cappuccino. Esse que é a mistura perfeita e que adoça meu paladar. Esse que não tira meu sono, mas me faz adormecer. E sonhar, me ajudando a ser leve, mesmo me impapulsando.
Você é meu café, por me tirar o sono, e precisar sempre da minha dose certa de açúcar. Sou seu açúcar. E você sem mim é apenas cafeína destilada.

Maysa Sales

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Saudade

Se existe dia até de finados, por que não existiria o dia da saudade, aquela palavrinha que só existe em português?
Sentir saudade é sublime, pois só a sentimos quando algo ou alguém nos marcou. Ninguém sente saudade daquele trabalho ruim, mas, com certeza, sentirá saudade dos amigos que lá encontrou, das horas de almoço de desabafos. Ninguém sente saudade das brigas com o namorado, mas, com certeza, sentirá saudade do momento da reconciliação. Sinto saudade de abraçar minha avó e pedir bênção. Sinto saudade daquele tio que respondia à bênção dizendo "Deus te faça feliz". Sinto muita, muita saudade do meu pai e de tudo aquilo que poderia ter vivido se ele estivesse ao meu lado, e já sinto saudade dele na entrada do meu casamento. Sinto saudade de quando voltava da escola, pensando e fantasiando tanta coisa, naqueles momentos em que eu já sentia saudade desse futuro, que agora já é tão presente. Sinto saudade dos meus sonhos, das minhas expectativas, das minhas esperanças, do frio na barriga, do colo que me aconhegava, da timidez, da descoberta e tanta do meu futuro. E sinto saudade e me alegro e rodopio e me desfaleço em saber que sentir saudade é o preço de viver e é o preço de deixar.

Maysa Sales

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Encontrar-se

Quando me encontrei comigo, eu estava de passagem. Gostei tanto de quem conheci que resolvi andar junto, lado a lado, dentro. Eu introjetei em mim aquela pessoa que, finalmente, não estava mais vivendo levianamente, mas participando verdadeiramente da realidade. Foi estando muito lúcida que pude me embriagar de arte e deixar minha imaginação inventar os caminhos que ela trilharia. Conheci paisagens, às vezes, muito familiares, mas o meu olhar era inédito.
Não sou mais imediatista quando me faço companhia, pois essa nova pessoa respeita o seu próprio tempo.Por isso, também é preciso evitar alguns lugares, pessoas, antigos hábitos e pensamentos. O passado só me cabe para servir como base para o que tenho me tornado. Cada dia eu amanheço numa página em branco e vou dormir numa outra cheia de coisas que escrevi e vivenciei. A única garantia é que nem sempre encontro o que procuro, mas sempre busco o estado e o lugar mais confortáveis para mim. Eu mereço experienciar esta fascinação pela vida e a liberdade de ser exuberante e transformar o chão em céu, o mar em útero, meu corpo em Templo. Respeito os que vivem de outro modo, porque meu caminho não é o certo nem o único, é o que eu escolhi para mim quando lancei mão do meu livre arbítrio.
E nasci apaixonada pelo amor, mas só agora, me fazendo companhia, é que ele deixou de ser uma palavra para se tornar uma experiência.
Sou muito grata por estar na esquina aonde eu estava passando e por ter me dado a mão. Caminhamos juntas: eu comigo mesma!

Marla de Queiroz

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Às vezes, livros

As pessoas são como livros. Você olha, de primeiro a capa, às vezes ao longe. Se aproxima para ver melhor o nome e sua descrição. Às vezes você já quer de primeira! Já outras, você guarda na memória para um outro dia. Alguns são difíceis de entender, mas, mesmo assim, você não desiste (até vê isso como um desafio); já outras vezes percebe que, mesmo sendo muito interessante, não lhe é cabível. Alguns não falam a sua língua, por isso precisam de tradução; há alguns que a tradução é horrível e nem compensa a leitura. Há também aqueles que vêm dedicados especialmente para você, já outros que não merecem dedicatória.
Às vezes você se apaixona pelo cheiro... pela forma, pelo conteúdo. Há livros que nos metem medo, já outros nem nos chamam a atenção. Às vezes... Os livros...

Desabafo de um dia que poderia ser mais frutífero. Ou mais livresco. Ou mais às vezes.

Maysa Sales

I see you

Recentemente, lembrei-me de uma cena de "Avatar". Isso é muito pra mim que tem amnésias de filmes. Não sai da minha cabeça aquela cena em que a Zoë Saldaña olha para Jake (o ex-fuzileiro, agora cadeirante). Ela já está apaixonada pelo rapaz e lhe diz: "I see you". Na linguagem desses nativos, a forma de dizer a alguém que você o ama é assim "I see you". Pode-se pensar uma tradução bem simples para o português para "Eu te vejo", mas "Eu vejo você" marca mais evidentemente quem são os sujeitos envolvidos.
Como essa cena não sai da minha cabeça, ando pensando justamente nisso. Amar é ver alguém. Não é qualquer alguém, pois, diante de milhões de pessoas, que vão e vêm, você de repente VÊ apenas uma. Elege, prefere, escolhe. Gasta suas energias para fazê-la sentir o que você pensa dela, que ela é única. Gasta seu escasso e preciosíssimo tempo a contemplá-la sorrindo. Sonha, dorme, acorda, veste a roupa, vai para o trabalho, volta do trabalho, sonha, dorme... e seu pensamento ali, pousado como uma abelha insistente, no colo que te abriga.
O amor se resume a essa visão. O tato é uma visão. O olfato é uma visão. A audição... Ah como, é. Assim infinitamente na fala. Os sentidos são a visão de ser humano. O querer é a demonstração ampla do aceitar. De dizer "sim" ao que a visão te concede. De dizer "sim" a alianças do infinito. De se permitir ver-se no outro, que é tão seu. De ver do outro lado um rosto que te pertence e que está tão perto de si, do lado esquerdo.
Amar é ver.

Maysa Sales

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Quebra-cabeça

Não sei o porquê de ficar tão impressionada com a movimentação da vida.
Um dia faz calor, outro dia faz frio, muito frio. Num dia você está a 1700 km de sua casa, no outro, já está dormindo na sua cama.
E a vida vai indo assim... Você vê seus primos crescendo, outros nascendo, e outros morrendo. E essa não estaticidade da vida às vezes me assusta.
Assusta porque não dá para pará-la. E, cada segundo que vivemos, já nos escapa, e um outro escapa novamente. A vida talvez seja isso: um escapamento, ou tomando de emprestado Derrida, um rastro. Aquilo que não tem origem, mas é já em si uma origem, uma origem que se perde e se confunde no ontem, já no hoje, que já é carregado de tanto amanhã.
E as pessoas também são para a vida como peças de um quebra-cabeça. Mas é um quebra-cabeça infinito. Quando se pensa que já está ajustado, lá vem a vida e troca as peças de lugar. Odeio ser uma peça, não gosto de sair do meu posto de conforto. Tenho medo de não me ajustar. Mas o que é muito interessante é perceber que sempre me ajusto. E que o medo faz de mim uma vencedora. Se eu tive medo do abismo, lancei-me infinitamente nele. Fechei os olhos, abri os braços e fui... Ainda não caí, o abismo é mesmo infinito! Será? Ainda há muita luz, às vezes fica escuro. Não sei se o escuro se dá quando fecho os olhos, porque aqui anda muitíssimo iluminado, ou se a escuridão é o rastro de alguém que já passou e está ofuscando a luz. Bem, o importante é que estou seguindo. "O infinito é realmente um dos deuses mais lindos".

Era pra ser sobre movimentação, mas acabou sendo um quebra-cabeça. Ainda estou quebrando a cabeça para entender o que finalmente queria dizer com tudo isso.

Maysa Sales

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O poeta inventa viagem, retorno e morre de saudade IV

Tenho pedido a Deus, e à lua, ontem
Hoje, a cada noite, PERPETUIDADE
Desde o instante em que me soube tua.
E que o luar e o divino perdoassem
O meu rosto anterior, rosto-menino
Travestido de aroma, despudor contente
De sua brevidade em tudo, nos afetos
No fingido amor
Porque fui tudo isso, bruxa, duende
Desengano e desgosto quase sempre.
Mais nada pedi a Deus. Mas pedi mais
À lua: que tu sofresses tanto quanto eu.

Hilda Hilst