Distribuir palavras talvez possa ser fraqueza e deixa à mostra do inimigo alguma insensatez. Melhor não dizer. Melhor calar-se e mostrar-se sorrateiramente. Deixa assim, o dito pelo não-dito. E ficamos bem.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Bicho de sete cabeças

Não dá pé
Não tem pé, nem cabeça
Não tem ninguém que mereça
Não tem coração que esqueça
Não tem jeito mesmo
Não tem dó no peito
Não tem nem talvez ter feito
O que você me fez desapareça
Cresça e desapareça...

Não tem dó no peito
Não tem jeito
Não tem ninguém que mereça
Não tem coração que esqueça
Não tem pé, não tem cabeça
Não dá pé, não é direito
Não foi nada
Eu não fiz nada disso
E você fez
Um Bicho de Sete Cabeças...

Não dá pé
Não tem pé, nem cabeça
Não tem ninguém que mereça (Não tem ninguém que mereça)
Não tem coração que esqueça (Não tem pé, não tem cabeça)
Não tem jeito mesmo
Não tem dó no peito (Não dá pé, não é direito)
Não tem nem talvez ter feito (Não foi nada, eu não fiz nada disso)
O que você me fez desapareça (E você fez um)
Cresça e desapareça... (Bicho de Sete Cabeças)

Bicho de Sete Cabeças!
Bicho de Sete Cabeças!
Bicho de Sete Cabeças!

Zeca Baleiro

terça-feira, 30 de outubro de 2012

veredas de um medo

"Por que era que eu estava procedendo à-tôa assim? Senhor sei?
O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Mesmo fui muito tôlo! Hoje em dia, não me queixo de muita coisa. Não tiro sombras dos buracos. Mas, também, não há jeito de me baixar em remorso. Sim, que só duma coisa. E dessa, mesma, o que tenho é medo. Enquanto se tem medo, eu acho até que o bom remorso não se pode criar, não é possível. Minha vida não deixa benfeitorias. mas me confessei com sete padres, acertei sete absolvições. No meio da noite eu acordo e pelejo para rezar. Constante eu puder, meu suor não esfria! O senhor me releve tanto dizer"

Guimarães Rosa in Grande sertão: veredas

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

‎"Fiz o que era mais urgente: uma prece.
Rezo para achar o meu verdadeiro caminho. Mas descobri que não me entrego totalmente à prece, parece-me que sei que o verdadeiro caminho é com dor. Há uma lei secreta e para mim incompreensível: só através do sofrimento se encontra a felicidade. Tenho medo de mim pois sou sempre apta a poder sofrer. (...) Eu peço a Deus tudo o que eu quero e preciso. É o que me cabe. Ser ou não ser atendida — isso não me cabe a mim, isto já é matéria-mágica que se me dá ou se retrai. Obstinada, eu rezo.
Eu não tenho o poder. Tenho a prece".

Clarice Lispector

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Mundo grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me conta
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

(...)

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos - voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escuteis os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

(...)

Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
- Ó vida futura! nós te criaremos.

Drummond in Sentimento do mundo

terça-feira, 16 de outubro de 2012

"Assim, minha mágoa se renovando sem cessar, e me achando mais perdida a meus olhos - como a todos os olhos que tivessem querido me fixar, se eu tivesse sido condenada para sempre ao esquecimento de todos!- tinha cada vez mais fome da sua bondade. Com seus beijos e seus abraços amigos, era enfim um céu, um céu sombrio, em que eu estava e onde desejaria ser deixada, pobre, surda, muda, cega. Já ia me acostumando. Emocionados, trabalhávamos juntos. Mas, depois de uma carícia penetrante, ele dizia: 'como isso te soará engraçado quando eu não estiver aqui, isso por que passaste. Quando não tiveres mais meus braços em volta do pescoço, nem meu peito para nele descansares, nem minha boca fechando-te os olhos. Porque é preciso que eu vá embora, para longe, um dia. E tenho de ajudar a outros, é meu dever. Embora isso não seja apetecível... cara amiga'... Em seguida, o pressenti, tendo partido, presa de vertigem, precipitado na sombra mais temível, a morte. Fazia com que prometesse que não me abandonaria. Vinte vezes fez essa promessa de amante. Era tão superficial quanto eu lhe dizendo: 'Te entendo'".

Rimbaud in Uma temporada no inferno

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Dessa vez, hei de ir como quem jamais partira
Recolho apenas os pedacinhos do que ficou
Jogo ao léu para que o vento carregue todo o mal, e haja mal!
De hoje em diante, só quero o que me faz bem.
Só quero o que me arranca sorrisos sinceros, olhares insinuantes,
beijos desconsertados, friozinho na barriga e lágrimas só de felicidade.
Cansei de ser seu atalho, seu porto seguro, porque a recíproca definitivamente não é a mesma.
Irei em paz, com a cabeça erguida e perseverante e tendo a certeza de que, se tudo na vida passa, você também passará e ficará apenas na [ins]estante da memória, como aquele alguém que já não é mais.